terça-feira, 25 de agosto de 2015

ESQUIZOFRENIA ZONAFRANQUINA


Dos delírios e aberrações esquizofrênicas zonafranquinas

Antes de demonstrar os obstáculos para o autodesenvolvimento, no sentido do embotamento da mente coletiva associado ao capital social de Manaus e do capital intelectual dos agentes do sistema de inovação, devemos ter nas mãos o que significa a palavra esquizofrenia. Do dicionário eletrônico Miniaurélio, extraímos o que segue:

Substantivo feminino.
Grupo de distúrbios mentais que, basicamente, demonstram dissociação e discordância das funções psíquicas, perda de unidade da personalidade, ruptura de contato com a realidade.
§ es.qui.zo.frê.ni.co adj. sm.

Portanto, o termo aponta para uma ruptura frente à realidade, além de transformar o substantivo feminino num adjetivo masculino. Fico agora à vontade para sugerir que a ZFM, tratada como modelo, como um fim em si mesmo, e não como projeto, como um meio para o autodesenvolvimento, nos desconecta com a natureza fundamental do capitalismo, estruturada na acumulação de capital e na apropriação de conhecimento, via competição, e não por meio da solidariedade. Ou seja, ou os locais caminham com as próprias pernas, criando suas próprias firmas, ou seus cidadãos permanecerão ou se tornarão sujeitos de segunda categoria. O conjunto de distúrbios da mente coletiva manauara está dissociado e em discordância com a lógica capitalista, permanecendo na esfera cadente, porque dependente, da atração de investimentos vis a vis da substituição de importações.

Adotar o mito do desenvolvimento unicamente à perna da atração de investimentos, reduz o crescimento econômico à uma questão contábil, na medida em que evitamos a importação de produtos para consumo no mercado doméstico, mas em contra partida ficamos dependentes de investimentos, metrificados pelos plantas industrias transferidos de alhures por alheios, e de tecnologia, metrificada pelos pacotes tecnológicos concernentes associados às licenças de produção, às assistências técnicas e à importação de insumos que constituem segredos estratégicos. Portanto, não é suficiente que as firmas e marcas globais atraídas para a ZFM sejam constituídas pelas leis brasileiras.

Na realidade, é bom que se diga que Manaus representa uma imagem em miniatura do Brasil, onde continuamos dependentes de tecnologia que geram produtos dinâmicos derivados da fronteira tecnológica. Ou seja, nacionalmente ainda não conseguimos nos libertar da dependência gerada com o Plano de Metas que construiu a diversificada plataforma industrial pátria, ainda que sejamos a uma das maiores economias do planeta. É fácil verificar essa dependência, quando se percebe que seguimos crescendo na onda das commodities e que não temos firmas e marcas globais na esteira das grandes tendências tecnológica da microeletrônica, por exemplo. Essa condicionalidade dependente caracteriza a nova hegemonia de poder global, não mais lastreada na posse do território, como da realização dos grandes impérios, mas na posse da tecnologia frente aos estados nacionais tardios e seus pertinentes processos de industrialização tardios.

Isto posto, podemos agora retornar ao objetivo fulcral desta reflexão que é apontar as aberrações e os delírios zonafranquinos, desde a perspectiva esquizofrênica. Para tanto, basta recorrer à qualquer listagem das 100 maiores indústrias do PIM. Adotei, fruto de uma busca rápida na grande rede, um levantamento da Revista Circuito de 2007, com base no ano 2006. Apesar estar desatualizada, serve para nossos propósitos, pois a essência do ano base 2014 não deve ter alterado o que desejamos demonstrar, mas apenas mostraria novos entrantes, reproduzindo seus capitais de origem e realizando a mais-valia global. Então vamos lá.

Nessa lista, entre as maiores marcas que faturaram ente US$ 500 milhões e US$ 2,8 bilhões em 2006, constavam apenas uma empresa considerada brasileira, pelo capital, que é a Recofarma, e apenas uma joint-venture onde uma das bandeiras era a brasileira, que é SEMP TOSHIBA. Todas as outras eram ou japonesa, ou finlandesa, ou norte americana, ou holandesa, ou sul-coreana. Provavelmente nessa lista hoje, devemos ter alguma grande firma e marca chinesa. Todos esses países desenvolveram em suas plagas pátrias políticas industriais e tecnológicas que privilegiaram as dimensões patrimoniais de suas firmas, tanto em nível de criação, quanto de consolidação de suas solvências nos mercados locais e internacionais. Consultando a Wikipédia, a enciclopédia livre da grande rede, consolidamos os seguintes dados e informações básicas sobre esses gigantes que se instalaram na ZFM.

1.      A líder de faturamento é a Honda, que manteve sua razão social do tempo do seu estabelecimento na ZFM, Moto Honda, em associação com firma importadora local. Seu slogan é ‘o poder dos sonhos’. Realmente, esse é uma grande lição na forma de sutra: para ir longe, para ir além, temos que sonhar, idealizar, projetar e executar. E não apenas copiar, na realidade, nesse caso nem mesmo copiamos. Foi criada em 1948, portanto, num ambiente pós-guerra, de reconstrução do Japão, por Soichiro Honda. Sua sede é em Tóquio. Possui 167.231 empregados. Seus produtos são: automóveis, caminhões, motocicletas, motonetas, quadriciclos, geradores, robótica, equipamentos marinhos, jatos, equipamentos para jardins. É um gigante!

2.      A Nokia foi criada em 1865 por Fredrik Idestam. Seus produtos são: torre de dados 4G-3G, sistemas, bancos e switches wireless. Em 2013, disponha de 97.000 empregados. Seu lucro em 2014 foi de € 6,5 bilhões. Em 2007, a Nokia era líder mundial na fabricação de aparelhos de telecomunicações móveis, com cerca de 40% do mercado mundial. Não à toa, foi líder de investimentos em P+D em decorrência da Lei de Informática. Em 2013, a divisão de sua linha de produção foi adquirida pela Microsoft. A Microsoft é uma empresa transnacional estadunidense com sede em Redmond, Washington, que desenvolve, fabrica, licencia, apóia e vende softwares de computador, produtos eletrônicos, computadores e serviços pessoais. É uma firma contemporânea criada em 1975, cujos proprietários estão arrolados como dois dos sujeitos mais ricos do planeta. São ambas gigantes.

3.      Recofarma é uma empresa brasileira, ainda que totalmente de propriedade da COCA-COLA DO BRASIL sediada no Rio de janeiro e pertencente à multinacional The Coca-Cola Company. Atua na área de produção de bebidas, sendo a fabricante de todas suas marcas pertencentes a esse poderoso grupo econômico, entre elas o refrigerante mais vendido do mundo, a Coca-Cola. Em 2011, a Recofarma se tornou a maior exportadora do Amazonas, com uma geração de US$ 120 milhões de divisas na venda de concentrados. A Recofarma é a 3ª maior fabricante em volume de produção da Coca-Cola no mundo. De fato, embora tenha em sua formação algum capital nacional, a tecnologia que utiliza está amarrada talvez ao maior segredo industrial da história da humanidade. A situação, certamente, é a mesma junto ao Grupo Simões, firma de capital local que atua com franquia da multinacional, produzindo refrigerantes. Portanto, não seria o que é ­ não seriam o que são ­ se não fossem as licenças para produzir um produto que representa uma das maiores marcas contemporâneas, que por ironia disputa com a marca Amazônia. Mas esta não gera riquezas no chão amazônico para os amazônidas na forma de amazonidades.

4.      A Philips aparece em quarto lugar na ordem de faturamento no PIM em 2006. Tem origem holandesa, tendo sido criada em 1891. Seu lucro em 2010 no mercado de eletrônica de consumo, lâmpadas e sistemas médicos foi de US$ 1,9 bilhão. Em 2011 contava com 119.000 empregados. Já em 2007 operava na ZFM numa parceria estratégica com a LG, que desponta na sexta posição na ordem de faturamento no PIM, em 2006.

5.      Na quinta posição está uma gigante sul-coreano, a Samsung. A Samsung foi fundada em 1936 por Lee Byunq-chul. Em 2013 tinha 489.000 empregados, quando acumulou US$ 22,1 bilhões em lucros, produzindo e vendendo smartphones, TVs, câmeras fotográficas, CDs, DVDs, discos rígidos, drives óticos, home theaters, impressoras, dentre outros, desde um faturamento de US$ 529.5 Bilhões. É um bom exemplo para nós que devemos trilhar a vereda do autodesenvolvimento, pois sua evolução se deu após a idealização de uma política industrial e tecnológica por parte da Coréia do Sul no final dos anos 1950 e início dos anos 1960, portanto, praticamente coincidindo com o período histórico da ZFM. Isso deveria nos dizer alguma coisa.

6.       A LG, como já dito, vem em seguida. Trata-se de uma co-irmã da Samsung em termos de fruto da mesma política de desenvolvimento nacional. Portanto, é outra gigante multinacional sul-coreana, possuindo fábricas instaladas nos 4 continentes. Foi fundada em 1958 por Koo In-Hwoi. O montante do seu faturamento anual está acima de US$ 500 bilhões de dólares.

7.      A sétima posição é da SEMP TOSHIBA. Consta no sítio da empresa que a Semp Toshiba é uma marca brasileira de equipamentos eletrônicos fundada em 1942 na cidade de São Paulo por Affonso Brandão Hennel. A empresa contava com 3.220 empregados no final de 2011. Informa, ainda, a Wikipédia que em 2010 lucrou R$ 2,2 bilhões e que em 2011 faturou R$ 1,6 bilhão, o que representa um aparente paradoxo, que mereceria ser aprofundado. Talvez apenas talvez seja resultado da concorrência com os gigantes sul-coreanos. Ao vir para a ZFM na década de 70 do século passado firmou a parceria estratégica com a Toshiba, unindo o domínio tecnológico japonês com a capacidade de produção da firma e marca nacional. Portanto, é um ilustre representante do capital nacional no grupo dos oito maiores faturamentos do PIM em 2006.

8.      Finalmente, o oitavo maior faturamento do PIM em 2006 é mais uma firma e marca de capital e tecnologia japonesa, que é a Yamaha. A Yamaha foi fundada por Torakusu Yamaha em 1955. Em 2005 contava com 39.300 empregados, tendo faturado US$ 12 bilhões e lucrado US$ 900 milhões nesse mesmo ano, produzindo motocicletas, motonetas, scooters e quadriciclos. Sem dúvida, outro gigante nipônico.

O capital e da tecnologia estrangeira presente na lista das maiores empresas instadas no PIM não para por aí. Seguem-se: Sony; Benq, Gillete, Panasonic, Jabil, Bic, Kodak, Pepsi-Cola, Showa, Thomson, Nissin, ... Enfim, se todo o faturamento dessas gigantes mundiais fosse totalizado, certamente seria maior do que o PIB brasileiro. Só os faturamentos dos dois gigantes sul-coreanos, Samsung e LG, ultrapassam a monta de US$ 1 trilhão. E reproduzem seus capitais realizando a mais valia global em qualquer local deste planeta que lhes seja favorável e amigável como aqui na ZFM. Pois só a Samsung, de cuja firma e marca sou fã pelo que representa ao se tornar líder mundial desbancando firmas tradicionais estadunidenses, afirma em seu site que se fosse um país seria o trigésimo quinto mais rico do mundo. É brincadeira, quando afirma que ¼ do seu capital intelectual tem grau acadêmico do doutor? Considerando que seu contingente operário é de 489.000 funcionários, temos que 122 mil são profissionais pesquisadores doutores! Esse número é quase igual ao total de doutores no Brasil, que segundo o censo do CNPq de 2014, é de 140.272. Como a região Norte ainda não superou a marca histórica de dispor de menos de 5% do total nacional, podemos afirmar que o Amazonas dispõe de 1,5% desse total, que é de 2.078 doutores. E ainda teríamos de verificar quantos desses estão efetivamente trabalhando nos chãos de fábrica de firmas locais e mesmo nos laboratórios do chão acadêmico, na medida em que talvez a maioria se lance nas relações de poder em busca de posição e status, deixando de atuar em pesquisas, para as quais foram treinados e formados. Isso é insignificante frente ao poder e à potência da Samsung para fins de desenvolvimento tecnológico e de realização de melhorias e inovações. Mas é o que temos; temos que otimizar e potencializar, fazendo mágicas e encantos. Não à toa a Apple briga nos fóruns internacionais quanto a posse de patentes da tecnologia touchscreen, após a Samsung ter tido limitado seu acesso às licenças e patentes que visavam o desenvolvimento de tecnologia por meio de engenharia reversa avançada. A evolução da Samsung alcançou inicialmente a cópia de produtos e processos transferidos de empresas estrangeiras, depois focou a busca melhorias e inovações incrementais conquistando mercados internacionais, e agora seu desafio são as inovações transformadoras e revolucionárias para consolidar e ratificar sua posição de líder mundial. Claro do ponto de vista da liderança econômica.

Portanto, trata-se de um absurdo dizer que essas firmas e marcas são nossas porque estão instaladas no PIM, reproduzindo seus capitais sob o manto de vantagens competitivas estáticas, só porque estão constituídas por leis brasileiras. Igualmente trata-se de outro absurdo dizer que temos tecnologia quando o PIM substitui importações pátrias de produtos dinâmicos, quando em verdade essa tecnologia está embutida nos pacotes tecnológicos associados aos projetos industriais, que exigem apenas o cumprimento de operações mínimas no chão de fábrica para o gozo das vantagens competitivas estáticas. Numa oportunidade passada ouvi um decano federado à classe patronal amazonense dizer, talvez com endereço certo para este pensador, que a ZFM não tem problemas com investimentos. Claríssimo que não, mas mantém dependência industrial e tecnológica em níveis cada vez mais assombrosos, ao passo em que tarda em acumular e expandir capital industrial em prol do autodesenvolvimento. Então, o que elas são desde o ponto de vista do autodesenvolvimento? São nossas parceiras de crescimento econômico; aportando capital e aplicando tecnologia, geram trabalho, pagam salários, recolhem tributos e difundem técnicas de gestão. Não é pouca coisa, mas não é tudo o que precisamos para o autodesenvolvimento. Precisamos fazer a tarefa de casa!

Então: dizer que as firmas e marcas líderes em faturamento do PIM são nossas é o que digo constituem aberrações; dizer que a tecnologia associada a esse faturamento é nossa é o que digo constituem delírios. E o que significam as palavras aberração e delírio, segundo o dicionário eletrônico Miniaurélio, respectivamente?

Substantivo feminino.
1.Ato ou efeito de aberrar.
2.Defeito, distorção.
3.Anomalia, anormalidade. [Pl.: –ções.]

Substantivo masculino.
1.Psiq. Distúrbio mental caracterizado por ideias que contradizem a evidência e são inacessíveis à crítica.
2.Exaltação do espírito; desvairamento.

É importante fazer uma associação com os significados aqui reproduzidos de esquizofrenia, aberração e delírio, pois a postura esquizofrênica encerra distorções e desvarios, limitando e emperrando a crítica e, sobretudo, a idealização de alternativas econômicas, desde a realidade real das coisas e fatos econômicos. Há uma correlação, na medida em que aceitamos a ZFM como um processo com fim em si mesmo, não encarando o desafio histórico de frente, não só quanto à sua condição de projeto, mas, sobretudo, quanto à sua oportunidade de ser entendido e adotado como meio para o autodesenvolvimento. Para tanto, como já dito e redito, o capital social de Manaus precisaria idealizar, dimensionar e implantar uma política industrial e tecnológica com base na dimensão patrimonial das firmas locais. É muito mais factível e lógico tentarmos trilhar o mito do desenvolvimento buscando realizar amazonidades do que pensando em apenas consolidar as firmas e marcas estrangeiras sob o manto da ZFM, que encerra contradições e limitações insolúveis do ponto de vista do autodesenvolvimento. Isto é verdade mesmo que o nível do ambiente de inovação manauara, segundo determinada taxonomia elaborada por pesquisador qualificado da FGV, albergue iniciativas de melhorias e de inovações incrementais enquadradas num estágio pré-intermediário numa escala que vai até 7, onde se processam as criações e as invenções, isto é, a  própria proximidade com a fronteira tecnológica. Basta observar as assimetrias e anacronismos históricos existente entre o chão de fábrica do PIM e os bancos escolares e as bancadas laboratoriais disponíveis no chão acadêmico, depois de observada a origem do capital que lidera o seu faturamento:

1.      Qual o PPB que foi efetivamente reduzido sociologicamente de esforços de pesquisa e de investigação locais sob o lema de produzir mais com menos?

2.      Quais foram as contribuições da academia local para as rupturas de engenharia de processo de mecanismos semi-montados (SKD) para partes e peças totalmente desagregados (CKD)?

3.      Qual a participação do Sistema Manaus de Inovação na revolução tecnológica que transformou o tubo catódico em peça de museu e trouxe as novas tecnologias associadas ao LCD, PLASMA e associações correlatas, quais OLED?

4.      Qual, enfim, a participação de academia local no desenvolvimento das tecnologias e correlatas evoluções sequenciais de telefonia móvel ­ ...; G3; G4; G5; ...?

Na tradição védica há um texto sagrado clássico que se chama BHAGAVADGITA, que reproduz um diálogo de Krishna para Arjuna. Arjuna se vê com medo de guerrear a boa luta. Então, Krishna lhe fala palavras fortes e duras, gerando efeito positivo não só para a resolução do problema existencial de Arjuna, mas o impulsionando para o autoconhecimento. Malbaratando essa verdade védica inserida no contexto da liberdade e da imortalidade, podemos dizer que essas palavras − esquizofrenia; aberração e delírios – visam despertar o capital social de Manaus para o autodesenvolvimento em busca da liberdade política e independência econômica da Amazônia por meio das amazonidades, vale dizer, da construção de capitalismo amazônico, que transforme insumos e saberes da floresta em produtos e serviços realizados no mercado. Isso enquanto o capitalismo for o sistema que organiza a humanidade no seu atual estágio de evolução espiritual. É absolutamente indispensável que tomemos refúgio na lógica genuína do sistema capitalista, que acumula lucros e apropria conhecimento entre firmas, expressos em capital e tecnologia, e na lógica dos estados nacionais, que os contabilizam em suas contas de comércio exterior. Devemos ter coragem heroica para travar a boa guerra vertida ao mito do desenvolvimento, indo para além da reprodução de capital e tecnologia de alheios e de alhures. Anexo, um dx de esperança!


Anexo: Da Esperança

O professor Frank Cruz defendeu sua tese de doutoramento, aprovada por unanimidade, com a realização da pesquisa intitulada O Efeito da Substituição do Milho pela Farinha de Apara da Mandioca em Rações de Poedeiras Comerciais em Manaus.

O trabalho, defendido em audiência pública realizada em 29.10.04, foi a primeira tese de doutorado em biotecnologia da Ufam e do Programa Multi-institucional de Pós-graduação em Biotecnologia financiado pela Suframa.

A reportagem denominada “Biotecnologia: resto de mandioca substitui o milho”, publicada no jornal A Crítica de 02.11.04, página C8, sintetiza o trabalho conforme trecho abaixo:

...Em sua pesquisa, o doutor Frank Cruz conseguiu trocar o milho, um produto importado pelo Estado, das rações para aves por um material produzido e encontrado em abundância na Amazônia – a farinha retirada dos restos de mandioca cortadas nas feiras de Manaus – sem alterar a qualidade do ovo produzido na região.

Os resultados da pesquisa mostram vantagens econômicas aos produtores do ramo de postura avícola...

Trata-se, portanto, de um exemplo recentíssimo de criação de uma amazonidade, à qual toda a atenção deveria ser dispensada. Temos dezenas, talvez centenas, quiçá milhares no futuro, de outras criações que mereciam igualmente o mesmo tratamento. Poder-se-ia fazer uma simulação da aplicação de uma política industrial e tecnológica à luz da do modelo estadunidense, que fez do Estados Unidos a maior potência econômica do planeta:

1.     Conceder prêmio pecuniário ao autor;

2.     Incentivá-lo a empreender a sua criação no mercado, financiando o investimento com taxa zero;

3.     Proteger a empresa nascente da competição predatória, inclusive estabelecendo barreira tarifária para a entrada de produto concorrente no Estado;

4.     Conceder subsídios até a consolidação do investimento;

5.     Estabelecer incentivos fiscais para todos os insumos e matérias-primas utilizadas na produção;

6.     Estabelecer novos prêmios e incentivos financeiros para o desenvolvimento de inovações tecnológicas de produto e de processo;

7.     Estabelecer outros prêmios e incentivos financeiros para a conquista de novos mercados; enfim,

8.     Oferecer capacitação de todo ordem (gerencial; tecnológica; mercadológica; etc.) para o sucesso do empreendimento.


Nota: Trata-se de um fragmento da segunda edição do Redesenhando o Projeto ZFM: um estado de alerta! uma década depois, publicada em 2006. Representa mais uma demonstração inequívoca que com amor próprio e galhardia poderíamos trilhar o mito de desenvolvimento pela vereda do autodesenvolvimento. Mais um exemplo de combinação virtuosa de catching up, na medida em que o pesquisador idealizou máquinas e equipamentos – trituradores e secadoras, por exemplo – de tecnologia universal, com a perspectiva do growing up, que se utiliza de um insumo amazônico enquanto trajetória tecnológica alternativa, trazendo benefícios para a ética da autossustentabilidade; ex ante, mitigando impacto ambiental utilizando a casca da mandioca como insumo, e ex post, reduzindo déficit na balança com a importação de milho. Mas, infelizmente, decorridos quase 11 anos desde a defesa da tese, não se tem notícias de que esse conhecimento tenha sido transformado na forma de negócio, e, como tal, acolhido e protegido por determinada política industrial e tecnológica amazonense que privilegie o capital e a tecnologia local. Não sabemos nem mesmo se essa transformação foi tentada.

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

SOBRE A NATUREZA REAL DA ZFM

ZFM: projeto ou modelo?
É instigante a persistência do pensamento único, especialmente do chão institucional, em adotar no seu discurso o conceito de modelo para categorizar a ZFM, padrão cognitivo que se estende, sobretudo, para as elites de governo e de políticos. Em minha opinião, representa, subliminarmente, o medo de perder o combustível do processo de industrialização de Manaus, lastreado por vantagens competitivas estáticas. Talvez venha à memória coletiva a perda do fausto vivido na época em que fornecíamos borracha natural para a nascente indústria global, que evoluiu para a borracha sintética. Tudo evolui se enfrentarmos os desafios.
Se percorrermos o marco regulatório, não encontraremos nenhuma alusão ao conceito que representa a palavra modelo, nem mesmo a identificamos explicitamente. E o que ela significa? Do dicionário eletrônico Miniaurélio, extraímos os seguintes significados:
Substantivo masculino.
1. Representação de algo a ser reproduzido.
2. Representação, em pequena escala, de algo que se pretende reproduzir em grande.
3. Protótipo de um objeto.
4. Pessoa que posa para artista plástico ou fotógrafo.
5. Pessoa ou coisa que serve de exemplo ou norma.
6. Protótipo de peça de vestuário, ou de outros produtos de consumo (como carro, televisão, etc.), a ser(em) fabricado(s) em série.
Substantivo de dois gêneros.
7. Manequim (3).
De plano, podemos excluir, considerando o que observamos ao longo dos 48 anos de existência da ZFM, e muito especialmente, a observação direta ao longo dos 31 anos de serviço na Suframa, a instituição que a administra, as explicações associadas aos itens 3, 4, 5, e 7. Os dois primeiros itens vertidos à verbalização “representar” ficam de fora, primeiro porque nunca se pretendeu e não se pretende reproduzir a ZFM em qualquer outro lugar; segundo porque, embora o faturamento do PIM seja sempre crescente ao longo da história, as firmas já nascem grandes e fortes, tanto industrial quanto tecnologicamente falando, portanto, não há o que reproduzir. Ao contrário, a briga é por manter sua excepcionalidade em Manaus, evitando concorrência com qualquer outro local pátrio a todo custo. Já o item 6 aponta marginalmente para a possibilidade industrial da atração de investimentos, ou seja, aprova-se projetos para a produção em escala de TVs, por exemplo. Mas são delírios e aberrações esquizofrênicas, pois todas as possibilidades sugerem dependência e limitações do ponto de vista do auto-desenvolvimento. Eu sei, eu sei. Atrair para substituir importações, reproduzindo processos e produtos. Mas só isso escraviza, enquanto que a perspectiva desafiadora do Projeto liberta. Temos que seguir em frente! Vejamos por quê e como.
Por outro lado, frente à perspectiva de modelo, o marco regulatório, mesmo não citando a palavra “projeto” para categorizar a ZFM, de forma inequívoca, o representa. De forma clara, inicialmente com a expressão do artigo primeiro do seu Decreto fundador, abaixo transcrito:
Art 1º A Zona Franca de Manaus é uma área de livre comércio de importação e exportação e de incentivos fiscais especiais, estabelecida com a finalidade de criar no interior da Amazônia um centro industrial, comercial e agropecuário dotado de condições econômicas que permitam seu desenvolvimento, em face dos fatores locais e da grande distância, a que se encontram os centros consumidores de seus produtos.
Ou seja, há um objetivo a ser alcançado, o que pressupõe o conceito de projeto. Vejam o que diz o mesmo dicionário sobre a palavra projeto:
Substantivo masculino.
1. Plano, intento.
2. Empreendimento.
3. Redação preliminar de lei, de relatório, etc.
4. Plano geral de edificação.
Não há dúvidas, que a ZFM aponta para um empreendimento, cuja intenção é a criação de uma dinâmica econômica no interior da Amazônia. Explicitamente há um plano de Estado com início, meio e fim. O prazo inicial de 30 anos, estabelecido com o artigo 42 do Decreto fundador, após sucessivas prorrogações, foi estendido até 2073 com a Emenda Constitucional 83/2014:
Art 42. As isenções previstas neste decreto-lei vigorarão pelo prazo de trinta anos, podendo ser prorrogadas por decreto do Poder Executivo, mediante aprovação prévia do Conselho de Segurança Nacional.
Art. 1º O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias passa a vigorar acrescido do seguinte art. 92-A:
"Art. 92-A. São acrescidos 50 (cinqüenta) anos ao prazo fixado pelo art. 92 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.”
Os recursos financeiros vertidos ao empreendimento ZFM que, por sua vez, se associa ao desafio vinculado ao autodesenvolvimento, pode ser, essencialmente, representado pela autonomia administrativa e financeira da Suframa e seus respectivos Planos Estratégicos, expressos por políticas e diretrizes, programas e ações. O artigo 10 do Decreto fundador assegura a perspectiva autárquica. As antigas Portarias institucionais que regulamentavam o preço público cobrado pela prestação de serviços e agora a Lei n.º 9.660/2000,[1] que institui a TSA, em especial os seus artigos quinto e sexto, que pontam para a perspectiva da gestão independente:
Art 10. A administração das instalações e serviços da Zona Franca será exercida pela Superintendência da Zona Franca de Manaus (SUFRAMA) entidade autárquica, com personalidade jurídica e patrimônio próprio, autonomia administrativa e financeira, com sede e foro na cidade de Manaus, capital do Estado do Amazonas.
Art. 5º. Os recursos provenientes da arrecadação da TSA serão creditados diretamente à Suframa, na forma definida pelo Poder Executivo.
Art. 6º. Os recursos provenientes da TSA serão destinados exclusivamente ao custeio e às atividades fins da SUFRAMA, obedecidas as prioridades por ela estabelecidas.
Ora, e o que significa autarquia? De novo recorremos ao Miniaurélio para buscar esclarecimentos:
Substantivo feminino.
1. Poder absoluto.
2. Governo dum Estado por seus concidadãos.
3. Entidade autônoma, auxiliar da administração pública.
§ au.tár.qui.co adj.
Portanto, a Suframa enquanto órgão federal possui condição jurídica absoluta e autônoma, enquanto entidade auxiliar do poder central, para a realização do empreendimento vinculado à ZFM. A liga, que une os recursos financeiros ao ideário de autodesenvolvimento, é, como já dito, os Planos Estratégicos elaborados ao longo da existência da Suframa, hoje expresso pelo aprovado junto ao CAS em 2010, que consolida toda a experiência visionária para além da ZFM. Considera-se para fins da atuação da SUFRAMA, as seguintes áreas estratégicas: [2]
I. Desenvolvimento Organizacional;
II. Gestão de Incentivos Fiscais
III. Logística;
IV. Tecnologia e Inovação;
V. Atração de Investimentos;
VI. Inserção Internacional;
VII. Capital Intelectual e Empreendedorismo; e
VIII. Desenvolvimento Produtivo.
Ou seja, como meio tem-se o desenvolvimento organizacional, como sarrafo e meta operacional, a gestão de incentivos fiscais, como instrumentos complementares a logística, a atração de investimentos e a inserção internacional, que impulsionam o ideário do autodesenvolvimento nas dimensões da tecnologia e inovação, do capital intelectual e empreendedorismo e do desenvolvimento produtivo. Essas áreas estratégicas se desdobram num conjunto de pencas de ações, que se executadas, expressariam a contribuição da Suframa/ZFM para a consecução do ideário do autodesenvolvimento. No entanto, escudados na tese do modelo, do medo frente ao desafio civilizatório, continuamos justificando os sucessivos prazos de prorrogação da ZFM com a carência de infra-estrutura e a dependência industrial e, sobretudo, tecnológica associada ao PIM, na esteira da atração de investimentos. Registre-se que as metas associadas ao centro comercial e agropecuário, por motivos diferentes, não acompanham as evidências do centro industrial, consignados como meta do Decreto fundador.
É evidente que esse esforço não está restrito ao chão institucional, mas deveria se espraiar por todas as missões dos agentes do governo, da academia e do próprio setor produtivo, consolidando uma visão de futuro desejado por parte da sociedade, por parte do capital social de Manaus, do Amazonas e da própria área de atuação da Suframa. No Anexo, apontamos uma iniciativa individual, mas o desafio é coletivo. O ideário deve ser coletivo.
Festejamos o produto do PIM/ZFM, mas não nos damos conta de sua natureza dependente. Se olharmos para todas as histórias centrais de desenvolvimento industrial e tecnológico identificar-se-á nos pertinentes planos e estratégias nacionais a preocupação com a dimensão patrimonial das firmas. Claro, a atração de indústrias e a transferência de tecnologias são ferramentas e instrumentos importantes de política industrial e tecnológica. Mas devem ter prioridades nessas políticas a emergência e a consolidação de uma estrutura empresarial e de inovações própria, local, endógena. Não basta que a firmas estrangeiras sejam abertas sob as leis nacionais.
Ao longo da nossa reflexão sobre o Projeto ZFM, ao passo em que ganhávamos experiência profissional e acumulávamos conhecimento intelectual no chão institucional, fomos progredindo do entendimento da necessidade de consolidar o PIM, via provimento de competitividade sistêmica, para a convicção do desafio do autodesenvolvimento, igualmente via provimento de competitividade sistêmica, mas com foco genuíno, único, ímpar. Nesse processo, idealizamos conceitos e propomos estratégias associadas. Destaco o principal intitulado de growing up em contraponto ao que os especialistas chamam de catching up, isto é, ao invés de apenas nos associarmos à trajetória tecnológica forjada pela fronteira tecnológica associada ao sistema global de inovação, deveríamos buscar utilizá-la, complementando-a com uma trajetória alternativa lastreada por amazonidades, entendida como a realização de insumos e saberes da floresta na forma de produtos e serviços no mercado local, regional, nacional e global. Essa visão, essa trilha, essa vereda, esse ideário amalgamado pela ética da autossustentabilidade. Como conseqüência desse conceito principal, identificamos o empreendedorismo científico-tecnológico, ou inovador como preferem os especialistas, como a principal estratégia para alavancar a correlata experiência civilizatória, adotando o chão amazônico como laboratório. O empreendedorismo científico-tecnológico, consolidado o Sistema Manaus de Inovação, a serem potencializados nos próximos 100 anos, enquanto ferramenta de superação do Projeto ZFM, a partir da cultura do capital de risco, entendido o capitalismo como processo organizador da sociedade mundial, é a chave-mestra do autodesenvolvimento. A partir daí acumular-se-ia mais e mais lucros e apropriar-se-ia de mais e mais conhecimento, a serem transformados em mais e mais negócios. A idéia não é negar a ZFM, mas superá-la, mediante construção de um capitalismo amazônico estruturado com vantagens competitivas dinâmicas.
Entendemos, portanto, que a adoção da ZFM pela categoria de um Projeto de Estado representa uma atitude guerreira, que desafia a condição intrínseca de impermanência das coisas no processo histórico evolutivo. Sobretudo, representa a perspectiva do caminhar com as próprias pernas, sem descuidar da interdependência local-global. Fazendo um paralelo com o autoconhecimento, poderíamos dizer que a adoção da ZFM pela categoria de um modelo representa viver somente sob a perspectiva do complexo mente-ego, com os objetos dos sentidos alimentando e nutrindo nossa existência, sem associá-lo com a busca da autorrealização desde a consciência. Malbaratando esse paralelismo, persistir no tratamento da ZFM sob a lógica de modelo significa viver sob o espectro do irreal; assumir sua perspectiva de Projeto seria viver na dimensão do real. O desafio do autodesenvolvimento representa a ponte que nos conduziria do irreal para o real.

Anexo:
Uma amazonidade, dentre centenas ou até mesmo milhares de oportunidades de negócios
O professor Antônio Mesquita, da Universidade Estadual do Amazonas, investigou como tese de doutorado em Engenharia de Recursos Naturais, a transformação do açaí em painéis sustentáveis, que denominou de ecopainel. O ecopainel é produzido a partir da fibra de açaí, com a utilização de uma resina de óleo de mamão. O processo de fabricação do ecopainel consiste na retirada das fibras dos caroços para secagem em uma estufa. Elas são moídas e depois misturadas com resina. Após a mistura, é realizada uma pré-moldagem e prensagem. Um colchão de fibras do açaí resinada é obtido, para ser processado numa prensa hidráulica, permitindo a fabricação do painel. Portanto, há aplicações tecnológicas de química e de engenharia de materiais para a inovação tecnológica. Portanto, há associação e combinação virtuosas entre a ciência estabelecida, na forma de tecnologia disponível para a produção de madeira compensada e correlatas melhorais e inovações incrementais, com a busca do progresso sociotécnico pela inovação contínua, na forma de utilização de recursos naturais alternativos e sustentáveis. No caso, catching up associado com growing up. A ideia fundamental é o aproveitamento de recursos naturais como materiais para a produção de uma amazonidade, isto é, a transformação de insumos e saberes da floresta em produtos e serviços a serem realizados no mercado. Trata-se, portanto, de uma alternativa real vertida ao autodesenvolvimento, inserida num processo sustentável à montante e à jusante, pois poderá beneficiar comunidade do chão amazônico na forma de associações e cooperativas, poderá mitigar impactos ambientais com o resgate do caroço de açaí que iria para o lixo, bem como representa uma boa perspectiva para fabricação de móveis sustentáveis. O ecopainel já tem carta-patente. E está em estudo a elaboração de um Plano de Negócios, com o objetivo de sua realização econômica. É nessa hora que o governo deveria se aproximar e facilitar essa realização econômica, financiando, incentivando e protegendo uma firma nascente. No curto e médio prazo, promovendo a emancipação econômica de negócios sustentáveis. No longo prazo, promovendo a construção de um capitalismo amazônico, vale dizer uma estrutura empresarial local inserida num ambiente de inovações permanentes, como fruto e resultado de uma política industrial e tecnológica heterodoxa, que privilegiaria a dimensão patrimonial da firma local. A tese foi defendida em dezembro de 2013. Iniciativas como essa, devida e efetivamente realizadas no mercado, deveriam ser exponenciadas!





[1] Necessariamente reformulada junto a sua natureza tributária e excepcionada junto à lógica da Conta Única da União.

terça-feira, 14 de julho de 2015

SOBRE A CONDIÇÃO ATUAL DA SUFRAMA

Impressões de uma institucionalidade perdida: expectativas de futuro
Falo da Suframa, a organização que alberga minha profissionalidade por 31 anos. Gostaria que as condições institucionais fossem diferentes. Mas a tendência é da sua extinção, salvo haja um governo estrategicamente forte. E ainda assim faltaria muito, senão vejamos:
De plano, revejo meu idealismo ao ajudar a organização na implantação do programa de interiorização. O que houve? Havia, por um lado, boa vontade com uma sistemática criteriosa para potencializar as condições infra estruturais e econômicas do chão amazônico. Por outro, todavia, prevalecia a perspectiva da política minúscula, aquela que retarda e até mesmo impede a realização de projetos. Resultado? Não avançamos e estamos obstaculizados com os passivos do macularam a estratégia do programa. O programa representa uma moeda onde sua dupla face deve estar em sintonia com o autodesenvolvimento. Só com essa ética poderá ter sucesso!
Em seguida, relembro o ideário de transformar os investimentos em P+D decorrentes da Lei de Informática num grande impulsionador de uma ambiência inovadora para Manaus. Aqui, estancamos numa grande encrenca, pois não conseguimos perceber que as firmas que trazem seus pacotes tecnológicos prontos, reproduzindo seus capitais por meio do cumprimento de PPB, não têm intenção real de aplicar os recursos financeiros compulsórios no desenvolvimento de melhorias e inovações. Em caráter específico, até criam seus institutos. Não obstante, pode-se perceber que, no geral, a caixa sistêmica do processo de inovação decorrente apenas aponta para inputs, deixando muito a desejar nos outputs.
O CBA, enfim, todos já sabemos. Continua à mercê do egocentrismo do tecnicismo estatal, que impede sua emancipação. Perdemos 14 anos com a não–implantação imediata da FAPEAM, pós Constituição Estadual de 1988, estamos perdendo outros iguais com a indecisão concernente a esse importante mecanismo de autodesenvolvimento. Uma grande indecisão histórica?!
A TSA é o novo mercado de trabalho para advogados, que oferecem às firmas incentivadas pendengas judiciais para suspensão de pagamentos futuros e resgates pretéritos. Ao que parece, argumentando a inconsistência, no sistema tributário, da sua base de cálculo em confronto com a de tributo. A isso, soma-se a definitiva perda da autonomia financeira em decorrência da conta única da União.
Administrativamente, vimos perdendo status com as administrações que geram problemas frente ao bom e regular ordenamento da coisa pública. Essa tendência é antiga, pois vem desde o escândalo do colarinho verde, adoçado com o do açúcar, desbravado até os atuais processos administrativos e policias.
Portanto, a Suframa está em cheque em quase todas as dimensões. Só funciona a expertise básica da aprovação e acompanhamento de projetos, que roda praticamente de forma quase mecânica, sob as rédeas do MDIC[1]. E tudo poderia ser diferente. Como? Bem, poderíamos imaginar que:
1.      O chão amazônico poderia estar recebendo benefícios efetivos com a aplicação dos recursos financeiros gerados pelo Projeto ZFM para a expansão e a melhoria de infraestrutura econômica, para a formação de capital humano técnico e especializado, para a promoção de P+D+I vertido às amazonidades, e para o estabelecimento de produção de pequena monta e com tecnologia universal. Mas não: os recursos financeiros se foram; e há uma montanha de processos em tomada de contas especiais.
2.      O sistema local de inovação poderia ter sido potencializado com avanços no mercado em nível de redução de custos, aumento do faturamento, melhorias&inovações de processos e produtos transmutando os PPBs. Royalties & patentes?! Um sonho perdido!? Mas não: há uma montanha de relatórios acumulados para análise. Além disso, parte dos recursos é retida em nível nacional.
3.      A bioindústria poderia estar sendo um acaso amazônico engatinhando para um futuro brilhante. Mas não: qual foi o produto que o CBA conseguiu contribuir com pesquisas para fazer entrar uma amazonidade no mercado? Sabe-se da redução drástica de seus quadros. Quais são suas parcerias estratégicas consolidadas com institutos e laboratórios de pesquisas? Qual o estado de seu ativo patrimonial, especialmente suas equipamentos e ferramentas de investigações tecnológicas? Não se tem notícias.
4.      A TSA poderia constituir uma fonte de arrecadação segura e estável. Superado o questionamento do caráter do preço público, gerado pela representação da classe patronal, poderia ter sido dimensionada em bases jurídicas duradouras. A base política local poderia ter argumentado a manutenção da autonomia financeira da Suframa frente ao estatuto da conta única. Houve uma grande inabilidade e uma terrível falta de perspicácia. Mas não: além de ter caído a ficha de que os recursos financeiros gerados com o Projeto ZFM não mais fazem parte de contingenciamentos, as taxas arrecadadas estão ficando sob o crivo da espada da justiça. O Estado do Amazonas talvez seja o maior interessado em cair de vez a obrigatoriedade da TSA, isto é, dela ser extinta, na esteira da extinção da Suframa, pois ampliariam suas margens de manobras em termos de políticas públicas com o uso do ICMS.
5.      A Suframa poderia estar institucionalmente forte, revisando permanentemente seu conteúdo estratégico, avaliando ameaças e oportunidades, revisando, redimensionado, melhorando e inovando seus procedimentos. Mas não: seu plano de diretrizes e políticas restou num quadro amorfo pendurado em suas salas, denunciando a perda da dinâmica histórica com os passivos, as encrencas e as indecisões, afora a inabilidade política. Agência Executiva? Não sei. De nada adiantará uma nova natureza jurídica, sem condições para operar a ópera para além da ZFM. Talvez sirva apenas para repassar atribuições e competências para outrem, como é o caso do cenário pessimista. Dizem que a nomeação de uma jovem e bonita política local ainda está em jogo. Que ela tenha boa sorte!
Penso que a bola da vez será a RFB. E seria um ganho estupendo para o Amazonas. A RFB poderia constituir um Departamento da ZFM, levando para as suas bases as unidades administrativas e os sistemas operacionais essenciais para o funcionamento do Projeto ZFM.  A sede da Suframa viraria um museu industrial, para expor criações e invenções de alheios de alhures. Os servidores seriam distribuídos para órgãos públicos federal. O Decreto-Lei n.º 288/1967 seria redimensionado. E todos viveriam felizes para sempre!
A incorporação das vantagens comparativas junto ao sistema tributário nacional geraria um gap tributário perene. Nos anos 2080, pediríamos nova prorrogação do prazo de vigência do Projeto ZFM, com base no argumento, vergonhoso porque já recorrente, de que ainda não terá sido possível construir uma infraestrutura que viabilize economicamente a produção industrial manauara por conta das longas viagens que os insumos e produtos realizam. Estaria confirmada a perspectiva de continuarmos como uma ponta de lança para a expansão do capital articulador da civilização ocidental, fazendo jus às palavras do navegante, da época dos descobrimentos, à serviços das Coroas espanholas e portuguesas, Américo Vespúcio à Lorenzo D’Medici, em carta de 1503: “essas novas regiões que descobrimos e exploramos ... podemos efetivamente chamá-las de Novo Mundo” (negritei). E todos viveriam felizes por mais 500 anos! Agora não mais dominado pela posse do território, mas pela posse da tecnologia.
Mas, afinal, quais são as oportunidades, num cenário otimista? O que poderia ser feito então para resgatar uma presença mínima da Suframa junto à nossa responsabilidade histórica com o mito do desenvolvimento?
a)      Quanto ao programa de interiorização: elaboração de planos de trabalho para aplicação com recursos financeiros não-reembolsáveis internamente, pelos especialistas da área de estudos econômicos e empresariais, para apresentação aos políticos, que correriam em busca de emendas parlamentares, aproveitando a expertise da Suframa com a ferramenta convênios. Ponto! Nessa inflexão, que sai da inércia para a pró-atividade, resgato reflexão contida na dissertação mestrado profissional deste servidor, de 2001, intitulada “Projeto ZFM: vetor de interiorização ampliado! ”, qual seja, de transferir a posse dos projetos de produção financiados, realizados em parceria com o Pronaf, para as associações e cooperativas, via autorização do parlamento municipal, numa espécie de mini programa de privatização. Mas para essa estratégia dar certo, precisaríamos entrar no terreno profícuo da política maiúscula. Essa perspectiva não é trivial muito menos fácil, mas possível desde que tenhamos boa vontade e vontade política.
b)      Quanto aos investimentos de P+D decorrente da Lei de Informática: negociar com o capital incentivado a possibilidade da redução da alíquota de 5% do faturamento para algo como 3% ou mesmo 1,5%. Mas dedicado a um Fundo Local, longe da ingerência do Planalto Central e das instituições do Sistema Nacional de Inovação, para investimentos no desenvolvimento de pesquisas com considerações de uso, indutor de negócios lastreados por amazonidades. Aqui, precisaríamos de boa vontade e vontade política dos atores da Hélice Tríplice, isto é, tanto do governo, indústria e academia, para gerir com eficácia e eficiência esse Fundo. Ponto! Para esse desiderato resgato a ideia da criação de um Conselho Político de Gestão Estratégica para o Desenvolvimento Industrial e Tecnológico vertido às amazonidades, visando o equilíbrio da oferta versus demanda tecnológica da bioindústria local que deve emergir e prosperar, enquanto plataforma para o autodesenvolvimento. Essa ideia está contida no “Pequeno Ensaio em prol da Construção de um Capitalismo Amazônico a partir de Manaus”, de autoria deste servidor, publicado em 2011.
c)      Quanto ao CBA, este deve passar para a esfera do Sistema Estadual de Inovação, sob a gerência do Estado do Amazonas e vinculado à Universidade do Estado do Amazonas. Ponto! Haveria uma concorrência saudável e sadia entre o Sistema Nacional e o Estadual de Inovação, com dois trinômios de agentes atuando em prol do autodesenvolvimento: [(Ufam+Inpa+Embrapa)+(UEA+CBA+IDAM)]. Nada de Inmetro ou quaisquer outras instituições não locais para geri-lo.
d)     Quanto a TSA, esta deve se ajustar a base de cálculo à condição de sua natureza tributária, apostando na legalidade da Lei n.º 9.960/2000, isto é, a incidência da taxa deve ser estrita ao serviço prestado, ainda que com a possibilidade de ser metrificado pelo volume da carga, por exemplo. Em outras palavras, não deve ser a mesma de tributos, que incide sobre valores das transações comerciais de importação e de internamento de mercadorias. Certamente a arrecadação cairá, mas não será mais questionada em juízo. Ponto! Aqui exigiria um novo ponto de inflexão institucional, quando a Suframa deixaria de ofertar, passando a demandar recursos para financiar seus objetivos estratégicos. Novamente seria fundamental uma boa vontade e vontade política heroica e hercúlea. Um governo estrategicamente forte poderia, quem sabe, abrir mais uma exceção à lógica da conta única, até para fazer valer a legitimidade da Lei n.º 9.960/2000, devidamente legalizada.
e)      Quanto à Suframa em si mesma, além de um plano de carreira competitivo, precisaria de uma equipe dirigente competente, profissional e séria. Ponto! Virou moda na Suframa a gestão com não titulares, isto é, com substitutos e substituições. Isso gera insegurança e displicência. Precisaríamos transcender as eras das festas e das falácias. Pontuar avanços e retrocessos, aprofundando as janelas de oportunidades e transformando ameaças em oportunidades. Caberia uma redução temporária da estrutura organizacional, super ambiciosa, até que novas condições objetivas se interponham para que uma atuação institucional estratégica pudesse ser possível.
Hoje faz 31 dias que sai da greve. E os meninos e as meninas, apesar das baixas no front, continuam firmes e fortes. Admiro a posição dessa juventude, que desejo tenha uma atitude pura, reservada à perspectiva da boa e justa remuneração. Mas continuo não acreditando na greve enquanto solução estrutural. Além da necessidade de o plano de carreira ser aprovado, que beneficiaria os profissionais e suas famílias, precisamos resgatar ou reconstituir as condições objetivas institucionais vertidas ao autodesenvolvimento minimamente autônomo e interdependente, para que a sociedade amazonense/amazônica possa superar a carência de uma solução definitiva, que traga liberdade política e independência econômica para o chão amazônico, desde a contribuição histórica da Suframa para além do Projeto ZFM.[2] Caso isso não aconteça, o vazio institucional se aprofundará, mesmo com a conquista de um plano de carreira competitivo. Sem falar na possibilidade do sindicalismo continuar se arvorando no chão institucional, sombreando rusgas entre o passado e o presente, portanto, construindo um futuro com base em mágoas e prepotências. A ocupação dos espaços no chão institucional deve ser com base na experiência e na competência, sob o manto da meritocracia; e não como resultado de caça às bruxas, para queimá-las na fogueira das ofensas e das intrigas. Por outro lado, sem dúvida, as greves contribuíram para a percepção de que a ZFM, doravante, poderá ter vida própria. Se é que já não possui.
Nesse período, entre 9.6.2105 e 10.7.2015, a organização finalmente decidiu minha nova lotação: no setor de arrecadação. Portanto, mantendo a opção de me afastar das discussões estratégicas e de atividades intelectuais prospectivas, progressistas e propositivas. No âmbito das reflexões, é como gostaria de finalizar minha carreira, sem necessariamente postular por cargos, porém, não me eximindo de responsabilidades diretivas ou, sobretudo, de assessoramento. Apesar de ter aprendido bastante na Corregedoria, onde cumpri minhas tarefas e fiz bons amigos, julgo que minha experiência e conhecimento deveriam ser aproveitados em assuntos estratégicos. Afinal, sinto-me corresponsável pela e confortável com a bolha estratégica em que se transformaram os planos institucionais, especialmente a idealização das políticas vertidas à inovação e ao empreendedorismo. Foi com esse intuito que formulei demanda junto à Ouvidoria do MDIC, após ter visto cerceado meu direito de acesso ao processo administrativo e ao Relatório da Comissão que definiu minha nova posição na organização, cuja missiva anexo à presente reflexão.

Anexo:
Caríssimos da Ouvidoria,
Sou Antônio José Lopes Botelho, 56 anos, há 30 anos servindo ao Projeto ZFM, na qualidade de servidor ativo do Estado brasileiro, lotado na Suframa.
Faço contato para pedir ajuda institucional desse MDIC no sentido de obter vistas do processo administrativo que alberga os trabalhos da Comissão estabelecida com a Portaria 496/2014. Para tanto, preliminarmente, protocolei requerimento junto à administração dia 25.6.2015, sem obter uma manifestação favorável ou mesmo uma justificativa para dilatação de prazo, contados 5 dias úteis desde o protocolo. Assim, faço opção por essa Ouvidoria, ao invés de renovar o pedido protocolado, considerando que o atual Superintendente se recusou atender-me, quando o procurei imediatamente antes da publicação da Portaria 287/2015, que definiu minha nova lotação na Suframa.
Já sabedor que iria ser deslocado da Corregedoria para o setor de arrecadação, fui tentar argumentar, esgotada as tratativas com a Comissão, a possibilidade de ser aproveitado numa função de leitura, interpretação, reflexão e produção de textos vertidos para abordagens prospectivas, progressistas e propositivas. Argumentaria que, apesar da formação básica em engenharia civil, a própria Suframa oportunizou, a partir de 1995/1996, a acumulação de experiência e conhecimento nas áreas de planejamento e desenvolvimento. Creio que o objetivo fundamental da Comissão deveria ser o aperfeiçoamento da gestão do conhecimento, alocando capitais humanos em sintonia com os desafios estratégicos institucionais, governamentais e de Estado. Passadas as dificuldades políticas com a gestão anterior, julguei que a organização fosse aproveitar minha experiência e conhecimento em questões estratégicas.
Já assumi o posto de trabalho na COARR, Coordenação de Arrecadação, onde estarei à disposição para contribuir no que for possível e necessário em suas atividades operacionais, mas reforço a possibilidade de que o argumento exposto possa ser considerado pela atual administração ou pela que vier tomar posse como titular da Suframa, agora por meio dessa Ouvidoria. No mínimo, desejo saber se há algo que desabone minha profissionalidade, construída com estudo do Projeto ZFM e dedicação à instituição Suframa.
Anexo à presente manifestação o requerimento protocolado junto à administração e endereçado ao Superintendente em exercício, o formulário encaminhado à Comissão e minha última publicação, para demonstrar o resultado da experiência e conhecimento acumulados à serviço do Projeto ZFM e da Instituição Suframa.
Atenciosamente,
Antônio José Lopes Botelho
SIAPE 401045





[1] Um eloquente e proficiente formador de opinião local, comentando esta reflexão, informou que há “14 PPBs travados, vetados”.
[2] Outro experiente e realizado formador de opinião, fazendo considerações acerca desta reflexão, ponderou que a “a prioridade da Suframa continua sendo a restauração de sua condição autárquica. Depois disso, tudo o mais seria facilitado”.

domingo, 24 de maio de 2015

CRÔNICA - SANTIAGO DE COMPOSTELA

Impressões de uma peregrinação
Fiz recentemente com o peregrino Antonio Mesquita o caminho português até Santiago de Compostela desde Viana do Castelo. Foram nove etapas: Caminha; Vila Nova de Cerveira; Valença; O Porriño; Redondela; Pontevedra; Caldas de Reis; Padrón. Portanto, apenas um pequeno trecho – Viana do Castela/Caminha – pelo litoral; outro, no sentido nordeste, entrando para o interior – Caminha/Vila Nova de Cerveira/Valença; finalmente, já no interior do território, no sentido norte, em direção à Santiago de Compostela, a partir de Valença. Pernoitamos uma noite em cada cidade, à exceção de Vila Nova de Cerveira e Santiago de Compostela, duas noites. Corria o tempo entre os dias 21 de março e 5 de abril deste ano de 2015. Escrevo esta pequena crônica 45 dias após o retorno, por memória, consultando o passaporte do peregrino, dando conta de um registro histórico e da saudade dos momentos de alegria e de tristeza, de prazer e dor que vivenciei com o amigo Mesquita. Sem apego; sem aversão. O passaporte ou credencial do peregrino nos foi concedido pelo Marcos Lucio, da Associação Paranaense dos Amigos do Caminho de Santiago de Compostela – Curitigrinos, por correios, a partir de uma articulação por e-mail. Consultei também o mapa fornecido pela Curitigrinos, para confirmar as distâncias entre as cidades.
Partimos pela TAP, de Manaus rumo a Lisboa, donde seguimos por trem até Viana do Castelo. Em Viana do Castelo recebemos nosso primeiro carimbo no passaporte de peregrino. Recebemos também de presente do gerente do Vianamar Residencial broches comemorativos do Caminho de Compostela. O meu perdi durante a peregrinação. Nela, no trecho entre Caldas de Reis e Padrón, perdi também o chapéu de pescador, presente da ricafilha Catharina e do genro Armando. Mas, ganhei muito, muito mais, como retrata esta crônica. Era 23.3.2015, quando partimos para Caminha. Neste trecho nossa principal cabeçada de marinheiro de primeira viagem, pois fizemos todo o trecho pela estrada. Mas foi igualmente bom, apesar de duro e árido, não permitindo desfrutar das trilhas entre bosques. Em alguns pontos da estrada, tínhamos uma bela visão do mar, do oceano Atlântico. Nesse trecho, ouvimos, no silêncio da caminhada, os primeiros sons das folhagens das árvores, que se batiam em decorrência dos ventos, o que veio a se repetir várias vezes em outros trechos, inseridos na natureza. Foram cerca de 29 km. Chegamos exaustos. Em Caminha, recebemos nosso segundo carimbo no passaporte de peregrino.
Partimos de Caminha no dia 24.3.2015 com a intenção de chegarmos a Valença, mas tivemos que pernoitar em Vila Nova de Cerveira. Ao chegarmos a Vila Nova de Cerveira, o companheiro Mesquita sentiu que seu joelho esquerdo lesionou. No dia seguinte, 25.3.2015, fomos a dois médicos. A médica da manhã, clínica geral, recomendou que ele não continuasse a caminhada. O da tarde, médico ortopedista e especialista em desportos, autorizou continuar mediante anti-inflamatório e antibiótico, considerando sua excelente condição física. Tiro e queda, o peregrino manteve-se à frente. De quebra, diferentemente das outras cidades, quando chegávamos exaustos no final da tarde e saíamos no início da manhã do dia seguinte, desfrutamos de Vila Nova de Cerveira visitando um castelo medieval no centro, que ofereceu uma belíssima vista do rio que corta a cidade. Contemplamos a paisagem, relaxando um pouco frente a situação que estávamos enfrentando. Do hospital, onde fomos à tarde, também tivemos uma belíssima visão da cidade, pois que ficava numa parte elevada da cidade. Inclusive, num dos momentos de indefinição quanto à condição do peregrino Mesquita, fui até a Igreja da cidade, para acalmar a mente frente à possibilidade de seguir caminho sozinho, aproveitando para conhece-la.
O caminho entre Caminha e Vila Nova de Cerveira é um caminho de muitas subidas e descidas, tanto na urbanidade quanto entre os lugarejos. Os pontos mais altos ofereciam belas paisagens, que parávamos para contemplar e fotografar. Foram cerca de 14 km. A trilha peregrina, que agora nos associávamos até Santiago de Compostela, é quase sempre margeando ou a estrada de asfalto ou a estrada de ferro que ligavam as cidades. Nesse trecho, se consolidou a tônica das fotos: enquanto eu tirava fotos de marcos e símbolos católicos-cristianos, o peregrino Mesquita se deslumbrava com as flores que florescem na primavera. Todas as minhas fotos relativas à iconografia da igreja católica foram postadas no facebook antoniojose.lopesbotelho. Outras fotos da peregrinação você também visualizar nesse mural.
Ao sairmos de Vila Nova de Cerveira para Valença, dia 26.3.2015, demos demonstração inequívoca de nossa intenção para finalizarmos o caminho, vindo a chegar, conforme planejado, em Santiago de Compostela no dia 1.4.2015. Estava chovendo. E estávamos estressados com a indefinição do dia anterior. Ele, o amigo Mesquita, buscando uma posição médica definitiva, que veio com a consulta ao seu médico particular em Manaus; eu buscando redimensionar a mente para seguir caminho sozinho. Queríamos finalizar a peregrinação, e contamos com a ajuda e a motivação vinda de amigos de Manaus, via canal wahtsapp, que muito nos ajudaram com suas mensagens de força e determinação: Lincoln; Ivana; e Paulo José. O peregrino Augusto ofereceu uma grande colaboração depondo sobre sua experiência e nos presenteando com curativos e preventivos Compeed para bolhas.
Diálogo especial, dentre outros, foi travado com o amigo José Lúcio, que me desafiou a trazer de lembrança uma pedra do Caminho. Após chegar às suas mãos, fui brindado com um belíssimo poema intitulado ““Licença ao Poeta” (Pedra no caminho ... de Compostela”, que registra o seguinte no roda pé: “(Em homenagem ao Amigo Antônio Botelho, que de sua peregrinação no Caminho de Santiago de Compostela/Espanha, trouxe-me uma pedrinha que encontrou em seu caminho, presenteando-me com sua experiência única, mágica, divina. Manaus/AM, de 06.04.15)”. O poema você pode desfrutar integralmente no Anexo 1 desta crônica.
Apesar de termos começado o dia estressados, conseguimos vencer mais cerca 18 km até Valença, último rincão português do caminho que fizemos. Valença foi uma bela surpresa, pois seu centro é no interior de um forte medieval. Já estávamos na porta do solo espanhol. No dia seguinte, 27.3.2015, seguiríamos caminho para O Porriño, atravessando cedo da manhã uma belíssima ponte que liga Valença a Tuí. Lá, em O Porriño, tanto no almoço quanto no jantar, o peregrino Mesquita comeu bacalhau. Esse prato era o seu prato preferido. Eu ainda alternava com um salmão. Comíamos bem para recuperar a energia. Havia sempre um doce de sobremesa. De entrada, sempre um pão com azeite. Mas o vinho estava sempre presente. E sempre brindávamos, bebericando-o! Nesses momentos, levávamos muitos “papos cabeça”: o principal foi sobre o ponto a partir d’onde acontecia a grande transformação espiritual. O peregrino Mesquita defendendo o locus do coração; eu, o da mente. Por práticas e valores diferentes, não convergimos, ainda que admitindo que o Ser reside no coração.
A peregrinação começou efetivamente a entrar nas veias, pois pegamos a pegada. Acordar cedo, tomar café e seguir caminho. Foi o que fizemos em Valença para chegar a O Porriño. No início desse trecho, fomos orientados por um peregrino da Associação dos Amigos Peregrinos a desviar o rumo do trecho original, percorrido por dentro do distrito industrial, para um alternativo, em meio à natureza. Apesar de apreensivo, foi um dos mais belos trechos, pois todo ele dentro de um grande bosque. Valeu a pena ter caminhado a mais cerca de 2 ou 3 km, apesar do cansaço e das dores nos ombros, quadris e calcanhares, remediadas com anti-inflamatórios. Vencemos mais cerca de 22 km. Em O Porriño recebemos o carimbo na credencial (ou passaporte) do peregrino na Residencial Louro. Na saída de O Porriño comprei uma ceroula de compressão de poliamida, para conta dar conta do frio que fazia à noite, em torno de 10 graus, às vezes até menos. O clima durante toda a epopeia peregrina foi agradabilíssimo. Ganhei um cinto do vendedor, pelo que substitui o barbante que segurava as calças de tectel. Na oportunidade, compramos nossas conchas, nossas vieiras.
De o O Porriño seguimos o caminho até Redondela, vencendo mais cerca de 15 km. Era 28.3.2015. Em Redondela, dormimos pela primeira vez num albergue, no Albergue de Redondela. Nestas oportunidades, que foram três, a rearrumação da tralha de manhã cedo, mesmo já engatilha na noite passada, exigia destreza para ajustar o saco de dormir, roupas e demais apetrechos, e também atenção para não esquecer nada, ao mesmo tempo, procurando não incomodar os peregrinos que ainda descansavam. A decisão de desfrutar de quartos e banheiros individuais em casas e residenciais de hóspedes nos posicionou entre o que se chama de turigrinos e os peregrinos puros, que ficam sempre em albergues municipais. Mas isso não maculou, de forma alguma, nossa intenção espiritual. A despeito da tralha, vide Anexo 2. Foi uma excelente experiência dormir num salão lotado de peregrinos, dividindo banheiro e cozinha. Nesse albergue, o peregrino Mesquita teve um belo encontro com o senhor de 68 anos que estava fazendo sua oitava peregrinação. Ele lhe disse: “podemos perder tudo, menos a fé em Deus!”. Nesse albergue, avistamos aqueles com quem faríamos amizade: Nuno e Helena. Experientes em caminhadas, eles desfrutavam de mais uma peregrinação. Num trecho, percebi que pararam numa oficina mecânica, que tinha uns banquinhos em torno de um pequeno jardim, quando me convidaram para sentar. Iriam tomar um vinho branco com o proprietário. Mas, agradecendo, declinei, pois precisava avançar. Helena foi para mim uma bela surpresa, conforme registrei adiante. Nesse albergue, lavamos nossa roupa no atacado, pois eu vinha lavando no varejo, sempre com a ajuda de terceiros. Lavei cueca e camisa apenas duas vezes: logo na chegada à Viana do Castelo e em Valença. Em Caminha e Vila Nova de Cerveira contei, respectivamente, com a ajuda da Ana e da Fernanda, gerentes/proprietárias da Residencial Portas do Sol e da Residencial Fernanda Guerreiro, respectivamente, onde recebemos os carimbos concernentes no passaporte do peregrino. Mulheres gentis e generosas; Fernanda, inclusive, não me cobrou a lavagem de duas peças de roupas. Em Redondela, praticamente fechamos a quilometragem inicialmente programada na decisão tomada em 2014, de fazer o Caminho Português desde Tuí, de pouco mais de 100 km. Com a decisão em cima da hora de começar de Viana do Castelo, o trecho originalmente planejado foi alterado para cerca de 180 km, numa média diária de 20 km.
Chegamos a Pontevedra após caminhar mais 18 km desde Redondela. Era 29.3.2015. Em Pontevedra nos hospedamos na Pensão Maruja, onde recebemos mais um carimbo no passaporte do peregrino. Nesse trecho, percebemos uma mãe peregrinando com sua filha numa diferença de idades entre 30 a 40 anos. Foi uma bela visão de duas gerações num mesmo esforço fé e determinação. Voltamos a encontrá-las duas ou três vezes, mas em seguida não as vimos mais. Nesses trechos finais, encontramos com várias pessoas e grupos, variando entre estudantes universitários até empresários. Num desses trechos, compramos duas conchas, duas vieiras de um casal de idosos, para amigos que estão na ponta da agulha para irem peregrinar até Santiago de Compostela, e que só não foram desta vez por questões circunstanciais: Ivana e Paulo José. Também nesses trechos percebemos várias vezes a ocorrência de estarmos utilizando a Via Romana XIX, uma longa vereda romana milenar, onde passamos por belíssimas pontes construídas a dois mil anos atrás. Conhecemos a histórica Ponte Sampaio, palco da resistência galega frente ao avanço napoleônico no século XIX.
Chegamos a Caldas de Reis após caminhar mais cerca de 23 km. Era 30.3.2015. Em Caldas de Reis, enquanto o peregrino Mesquita desfrutava das águas termais que a cidade oferece relaxando os pés, eu cuidava das minhas primeiras bolhas. Aqui, aparece a meu anjo da guarda que furou, drenou e desinfetou minhas bolhas, localizadas do lado externo dos calcanhares direito e esquerdo e na sola do pé esquerdo, debaixo do calcanhar. Foi minha prima Helena, também Botelho. Ficamos sabendo dessa convergência em Santiago, depois que cruzamos as Compostelas. Aliás, outra coincidência, pois depois de Caldas de Reis seguimos espaços e tempos diferentes, mas nos encontramos exatamente na fila da Oficina do Peregrino para colher a Compostela. Num trecho, simplesmente, encontramos um bilhete do Nuno e da Helena, deixados no solo da trilha presos com pedras três horas antes, perguntando como estavam as bolhas. Fantástica a solidariedade que une os peregrinos no caminho. Em Caldas de Reis também pernoitamos num albergue. No Albergue Caldas de Reis, onde recebemos o carimbo em nossa credencial do peregrino.
Até Santiago de Compostela foram cumpridos mais dois trechos finais, que completaram os cerca de 180 km desde Viana do Castelo: de Caldas de Reis a Padrón, distantes uma da outra cerca de 19 km, que foi realizado em 31.3.2105; e de Padrón a Santiago de Compostela, distantes uma da outra cerca de 25 km, que foi realizado em 1.4.2015. Em Padrón, pernoitamos pela terceira vez num albergue. No Albergue de Padrón, onde mais uma vez recebemos o carimbo na credencial do peregrino. Um belíssimo albergue. Na minha opinião, o melhor dos três em que nos hospedamos. O de Redondela é muito bom e prático, pois o único que dispunha de lavadora de roupas. O de Caldas de Reis é simpático, com uma pequena pracinha na frente. A chegada em Padrón foi uma demonstração da amizade que o peregrino Mesquita nutre por mim, combinada com sua visão compassiva que adota na vida. Fiz esses dois últimos trechos com bastante sofreguidão, pois as bolhas incomodavam, sendo que uma dela inflamou e precisou ser novamente drenada em Santiago. E, mais uma vez, com a ajuda da prima Helena. Assim, ele estando mais à frente, chegou por primeiro no albergue. Não satisfeito, voltou para me resgatar pelo caminho. Nesse momento, estava andando bem devagar, já meu limite, no meu tempo, realizando o espaço possível. Quando saímos de Padrón tomamos café num recinto, cujo proprietário tem a tradição de tiras fotos dos peregrinos. Então, a nossa talvez esteja atachada numa das paredes daquele estabelecimento. Na chegada a Santiago, sempre à frente, parou num bar, pediu uma cerveja e ficou a me esperar para brindarmos a conquista. O percurso entre a cerveja, na entrada da cidade, e a Compostela, já na Oficina do Peregrino, me pareceu durar uma eternidade de tanta dor que sentia nos calcanhares.
Em Santiago, jantamos com os amigos Nuno e Helena. Compramos lembrancinhas para familiares e amigos. Voltamos para Lisboa de ônibus na sexta-feira santa dia 3.4.2015. Pegamos voos TAP/TAM de volta para Manaus, via São Paulo, no sábado dia 4/5.4.20015. Em Lisboa, onde pernoitamos, no IBIS Centro Saldanha, de 3 para 4.4.2015, ainda deu tempo para passear novamente de teleférico e revisitar o aquário gigante, representando a vida dos oceanos deste planeta, no Parque Vasco da Gama. Já havia desfrutado desse programa com a ricafilha Carolina, numa oportunidade passada, em 2008.
Em Santiago de Compostela, conseguimos a emissão da Compostela, na Oficina do Peregrino, somente possível quando a credencial está repleta de carimbos atestando o caminho peregrinado. A pé, de pelo menos 100 km. Também nesse posto, o carimbo na credencial foi mais uma vez efetuado. Lá, em Santiago de Compostela, fiz a doação, para uma senhora pedinte sentada numa das portas Catedral, da bota, do tapete térmico e dos dois cajados. A doação foi um pequeno símbolo de gratidão ao Universo pela oportunidade concedida de realizar a peregrinação. Na Catedral, não foi possível assistir à missa tradicional dedicada aos peregrinos com a cerimônia de incensação por meio de um sistema de cordas fixas no teto com turíbulo gigante como sempre celebrada ao meio dia, pois era quinta-feira santa. Mas assistimos, eu e o Mesquita, uma missa alternativa à data representativa do momento de crucificação/morte de Jesus Cristo, na qual o sermão foi centrado nos dez mandamentos, ditados no Antigo Testamento e sintetizados por JC nos Evangelhos de Mateus e de João, portanto, apresentando e discutindo a perspectiva de uma vida lastreada pelo aprendizado espiritual de “amar ao próximo como a si mesmo e a Deus acima de todas as coisas” frente à missão terrena de cada qual. Ainda na Catedral, abracei, como recomenda o protocolo de fé do peregrino, Santiago pelas costas, ao mesmo tampo, fazendo três pedidos, para que um seja concedido. À Catedral voltei mais uma vez na manhã de sexta-feira, dia 3.5.15, antes de pegar o ônibus para Lisboa, para, de novo, agradecer, agora em forma de oração, à conspiração favorável do Universo, que oportunizou a peregrinação e o seu sucesso.
Santiago de Compostela tem uma urbanidade tipicamente medieval. Suas edificações no entorno da Catedral possuem fachadas e calçadas de pedra lascada em tonalidades verde-cinzentas escuras, gastas pelo tempo. Suas ruas são estreitas e labirínticas; nelas me perdi quando retornei da compra de um par de sandálias alpercatas, para viabilizar a doação das botas e ainda facilitar a cura das bolhas que ainda incomodavam. Esse centro acomoda serviços de hotelaria, gastronomia, bares, de comércio, etc. Nos hospedamos no mesmo hotel onde estavam Nuno e Helena. Pernoitamos do dia 1 para 2.4.2015 e de 2 para 3.4.2015. No Hostal St. Cruz recebemos mais um carimbo na credencial do peregrino. Jantamos com Nuno e Helena, para celebrar o momento, no Restaurante Ribadavia, próximo ao hotel, onde também recebemos mais um carimbo no passaporte de peregrino. Aliás, somente a partir de Tuí passamos a pedir carimbos em lanchonetes e restaurantes, por recomendação de dois peregrinos que faziam o caminho desde O Porto de bicicleta. De tal sorte, que as nossas credenciais ficaram quase todas preenchidas, demonstrando literalmente nossa epopeia peregrina. Uma dessas foi especial: na Pastelaria Acunã, em Arcade, Soutomaior, entre Redondela e Pontevedra, de propriedade de casal de brasileiros baianos.
As caminhadas eram para mim subdivididas em três grandes momentos. Duravam, em média, entre 6 e 7 horas, de porta a porta, considerando as paradas para descanso, incluso fotografar e comer alguma coisinha. Ou seja, saíamos em torno das 9 h e chegávamos às 16 h. As duas primeiras horas eram de alegria. Alegria por estar peregrinando. Por estar na trilha. No caminho. O segundo momento era de reflexão e de contemplação. Mantrava, mantrava e mantrava: nesse momento mergulhava para o interior em busca do autoconhecimento. Finalmente, a última etapa era de cansaço, até mesmo de exaustão. Do desejo de chegar, tomar um banho, fazer as necessárias aplicações de gelo nos calcanhares – Mesquita cuidava do joelho esquerdo -, comer, descansar e dormir. Neste sentido, sempre procurávamos nos recolher cedo; nos albergues as luzes desligavam às 22:00h, à exceção do de Redondela, onde os jovens foram até às 23:00h conversando e rindo como que em estado de graça.
Mesmo que o peregrino Mesquita fosse sempre à frente, por sua condição física de melhor qualidade, estávamos sempre juntos. Conversávamos. Discutíamos. Mas estávamos sempre convergindo para e em comunhão com o momento precioso e auspicioso que vivíamos. Aprendemos muito um com o outro e aprofundamos nossa amizade, selada na Ponte Rio Negro, durante os treinos preparativos, de que não haveria frescura entre nós, de que procuraríamos ser honestos e verdadeiros um com o outro. Esse selo foi importante para vencer com alegria e prazer os momentos de dificuldades que advieram durante a caminhada em comum. O fato de ir à frente registre-se, era um motivador para que eu vencesse a distância e o cansaço, pois sempre vinha com o chamado: “Vamos peregrino! Vamos peregrino! Vamos peregrino!”. A minha preparação foi de dois meses, da segunda quinzena de janeiro de 2015 a primeira quinzena de março de 2015, e ficou a cargo do professor de educação física Saulo. Foi dimensionada em duas partes, aeróbica e muscular, três vezes por semana. Programação cumprida integralmente. Não faltou fôlego, mas sobrou dores nas articulações, especialmente nas dos calcanhares.
As setas, na maioria das vezes na cor amarela, que passamos a seguir desde o segundo trecho estabelecem uma forte associação com os sinais que a vida nos oferece. Às vezes fortes e claras, às vezes tênues e sutis, e até mesmo ausentes, mas subliminarmente sempre presentes. Estávamos sempre à procura delas para evitar o descaminho e o erro, o que faria perder tempo e aumentar a distância e o cansaço até o próximo albergue. Hora com a razão; ora com a intuição. Como acontece na vida. Exatamente igual. De forma equivalente, podemos fazer analogia com as pedras encontradas nas trilhas da peregrinação em comparação com os obstáculos que enfrentamos na vida, isto é, devemos desviar delas, para evitar tropeços. Sem apego nas vitórias. Sem aversão nas derrotas. O somatório delas aponta para a nossa experiência, pois são elas que nos fazem avançar na vida.
Na vida devemos cumprir uma dada missão, expressos por compromissos seculares. Profanidade. Contudo, sem perder de vista a perspectiva divina. Espiritualidade. Isso para quem adota essas duas vertentes existenciais, pois às vezes os humanos não se dão nem conta da existência secular quanto mais de uma existência espiritual. Há um forte simbolismo no chegar à Santiago de Compostela. A ideia, segundo meu entendimento, é cumprir a missão, o caminho em si mesmo, em vista da evolução e, sobretudo, da liberação do espírito. Ou seja, chegar à Compostela representa a realização espiritual. Simbolicamente falando, claríssimo, pois o caminho é longo e árduo. Idealmente, podemos nos dar conta de que já somos ilimitados e plenos; livres e imortais. Mas essa é outra conversa.
De qualquer sorte, essa simbologia estabelece uma sinergia positiva com os conceitos hindu-budista do karma e do Dharma. Ou seja, precisamos realizar ações no contexto da existência enquanto terráqueos, mas precisamos ao mesmo tempo realiza-las mirando a ordem cósmica. É o que podemos aceitar como significados dos conceitos institucionalizados no contexto cultural e espiritual do Caminho até Santiago de Compostela: ultreya e sustreya: vá em frente; vise o alto.
Finalmente, gostaria de registrar minha motivação pessoal, subdividida em duas, para fazer a peregrinação até Santiago de Compostela. Foi numa homenagem à minha origem cristã. Meus pais seguiram à sua maneira o cristianismo. Meu pai, Sebastião, foi espírita praticante, seguindo o Evangelho Segundo o Espiritismo por mais de 50 anos. Minha mãe, Maria Eliza, devota de Nossa Senhora a vida inteira, rezava, diariamente, o terço católico. Então, nasci e me criei num lar espiritualizado sob a ordem cristiana. Ainda que tenha me dado conta desta perspectiva existencial somente aos 46 anos, adoto a espiritualidade do Yoga lastreado pelo Vedanta como prática e caminho espiritual já por 10 anos. Entendo, portanto, que, assim como na peregrinação até Santiago de Compostela, como dizem os peregrinos, todos os caminhos levam à Catedral, todas as espiritualidades conduzem ao Brahman dos hindus, ao Deus dos cristãos, ao Javé dos judeus, ao Vazio Luminoso dos budistas e ao Alá dos mulçumanos, que ontologicamente são os mesmos e um só. Assim, para além dos dogmas religiosos, buscando as convergências entre as doutrinas e espiritualidades conexas, poderemos visualizar o portal para o amor e a compaixão entre os homens. Essa primeira motivação foi de ordem sagrada, digamos assim. A segunda foi de ordem profana, na medida em que estabeleci o desafio para enfrentar a condição de coronariopata desta forma ordinária, assim como foi quando decidi subir a Pedra Bonita e o morro Dois Irmãos, no Rio de Janeiro, em novembro da 2014, como parte da preparação para a peregrinação, junto com o Mesquita e o Paulo José, sob a liderança do guia Felipe, de Niterói. A ideia não é desafiar a morte, mas viver intensamente a vida, dentro do possível, com programação e prudência. O próximo sarrafo será subir o Monte Roraima, na tríplice fronteira Brasil/Venezuela/Guiana. Junto à estatística da Oficina do Peregrino consignei igualmente duas motivações: uma de ordem desportiva/cultural; outra espiritual, descartando a religiosa.
Um barato total! Parece paradoxal um programa que gera algum sofrimento e sobretudo muitas dores oportunizar alegria, contentamento e mesmo sabedoria. Mas é verdade! Acredite! Custo da brincadeira? Quase irrisório frente aos benefícios. Tudo em 3, 4, 5 e até mesmo 6 vezes, como as passagens, à exceção do dinheiro levado em mãos. Vale a pena! Recomendo!

Anexo 1:


“Licença ao Poeta”
(Pedra no caminho… de Compostela)
                                                   (J. Lúcio S. Pereira)
“No meio do caminho
Tinha uma pedra”

Assim anuncia
O poeta!

E eu,
Que não sou versador
Já licença peço

E
Digo

Que havia
No meio do caminho
Uma pedra…
De Compostela!

E o que mais
Poderia eu querer

Se no meio
De tantas pedras
Em meu caminho
Lá estava ela
Límpida, pura, enigmática!

Assim era
Pois,

A pedra
Que estava
No meio de meu caminho…
Pedra de Compostela!







Anexo 2:
A tralha foi composta de:
1.      Mochila 50 + 10 litros;
2.      Saco de dormir;
3.      Toalha grande superabsorvente;
4.      Toalha pequena superabsorvente;
5.      Tapete antitérmico;
6.      Sistema de hidratação de 3 litros;
7.      2 cajados;
8.      Relógio de pulso;
9.      10 sacos plásticos pequenos;
10.  1 par de botas;
11.  1 par de sandálias;
12.  2 pares de meias grossas;
13.  2 pares de meia finas;
14.  1 par de meia de compressão;
15.  3 cuecas de compressão de poliamida;
16.  2 calças-bermudas tectel;
17.  1 ceroula de compressão de poliamida (comprada em O Porriño);
18.  1 chapéu comum (comprado em Padrón);
19.  1 cinto de tecido (ganhado de presente no caminho);
20.  2 camisas segunda pele de manga longa;
21.  2 camisas tectel de manga longa;
22.  1 casaco fleece;
23.  1 casaco para chuva e vento;
24.  Chapéu com abas de proteção contra o sol (perdido no caminho);
25.  Telefone celular;
26.  Carregador de energia;
27.  Lanterna pequena;
28.  Fone de ouvido;
29.  Apito;
30.  5 metros de fio de nylon;
31.  Cachecol;
32.  1 par de luvas (não usada);
33.  Óculos escuros;
34.  Apetrechos de higiene pessoal (escova de dente; pasta de dentes; sabonete/sapão; manteiga de cacau);
35.  Documentos de identidade; cartão de crédito e dinheiro;
36.  1 bolsa self money;
37.  Remédios e curativos e preventivos para bolhas (parte comum);
38.  10 cachês de carbo-hidratos.

A mochila ficou pelo menos 1 kg mais pesada do que deveria, considerando o meu peso. Sai de Manaus com 9kg e 200 gramas. Idealmente, deveria ter ido com no máximo 8 kg, frente aos meus 75 kg. Mas não larguei apetrechos pelo caminho, assumindo integralmente a decisão do que levar. Ela certamente voltou mais leve, pois só os 10 cachês pesavam cerca de 800 gramas. Esse carbo-hidrato era o meu primeiro “almoço”, idealizado pela Cristina, minha esposa. O peso inicial certamente contribuiu para as dores e o cansaço, além do próprio desafio de caminhar cerca de 20 km por dia, para cumprir o total de 180 km em 9 dias. Mas valeu a experiência. Talvez tirasse 2 ou 3 itens não essenciais para trilhas equivalentes. Mas também poderia repetir a dosagem sem problema. Finalmente, faço alguns registros importantes: o sistema de hidratação, apesar de ter me dado problema molhando roupas, pois estava danificado, vazando, é superinteressante, pois permite beber água facilmente; as botas de aventura foram enquadradas como inadequadas, sendo recomendadas mesmo as especializadas de trilhas; o tapete térmico, mesmo não tendo sido utilizado para suprir falta de colchões para dormir, serviu para a prática de Yoga e meditação; e, os dois cajados foram de extrema valia, especialmente nas subidas, alavancando o deslocamento, e nas descidas, protegendo os joelhos. Mesmo no plano serviam de apoio, especialmente quando os calcanhares começavam a doer no último terço da caminhada diária.

A tralha, em sua maior parte, foi comprada com pela www.amazon.com com a ajuda do genro Germano e da ricafilha Carolina. Outra parte foi comprada por mim em Orlando e em Manaus. Dois itens o amigo Mesquita trouxe de São Paulo. Apenas um item comprei por site nacional. A bota, seminova, de aventura, já era minha companheira de outras viagens de férias. O protetor solar, parte comum, foi na mochila do peregrino Mesquita.