domingo, 24 de maio de 2015

CRÔNICA - SANTIAGO DE COMPOSTELA

Impressões de uma peregrinação
Fiz recentemente com o peregrino Antonio Mesquita o caminho português até Santiago de Compostela desde Viana do Castelo. Foram nove etapas: Caminha; Vila Nova de Cerveira; Valença; O Porriño; Redondela; Pontevedra; Caldas de Reis; Padrón. Portanto, apenas um pequeno trecho – Viana do Castela/Caminha – pelo litoral; outro, no sentido nordeste, entrando para o interior – Caminha/Vila Nova de Cerveira/Valença; finalmente, já no interior do território, no sentido norte, em direção à Santiago de Compostela, a partir de Valença. Pernoitamos uma noite em cada cidade, à exceção de Vila Nova de Cerveira e Santiago de Compostela, duas noites. Corria o tempo entre os dias 21 de março e 5 de abril deste ano de 2015. Escrevo esta pequena crônica 45 dias após o retorno, por memória, consultando o passaporte do peregrino, dando conta de um registro histórico e da saudade dos momentos de alegria e de tristeza, de prazer e dor que vivenciei com o amigo Mesquita. Sem apego; sem aversão. O passaporte ou credencial do peregrino nos foi concedido pelo Marcos Lucio, da Associação Paranaense dos Amigos do Caminho de Santiago de Compostela – Curitigrinos, por correios, a partir de uma articulação por e-mail. Consultei também o mapa fornecido pela Curitigrinos, para confirmar as distâncias entre as cidades.
Partimos pela TAP, de Manaus rumo a Lisboa, donde seguimos por trem até Viana do Castelo. Em Viana do Castelo recebemos nosso primeiro carimbo no passaporte de peregrino. Recebemos também de presente do gerente do Vianamar Residencial broches comemorativos do Caminho de Compostela. O meu perdi durante a peregrinação. Nela, no trecho entre Caldas de Reis e Padrón, perdi também o chapéu de pescador, presente da ricafilha Catharina e do genro Armando. Mas, ganhei muito, muito mais, como retrata esta crônica. Era 23.3.2015, quando partimos para Caminha. Neste trecho nossa principal cabeçada de marinheiro de primeira viagem, pois fizemos todo o trecho pela estrada. Mas foi igualmente bom, apesar de duro e árido, não permitindo desfrutar das trilhas entre bosques. Em alguns pontos da estrada, tínhamos uma bela visão do mar, do oceano Atlântico. Nesse trecho, ouvimos, no silêncio da caminhada, os primeiros sons das folhagens das árvores, que se batiam em decorrência dos ventos, o que veio a se repetir várias vezes em outros trechos, inseridos na natureza. Foram cerca de 29 km. Chegamos exaustos. Em Caminha, recebemos nosso segundo carimbo no passaporte de peregrino.
Partimos de Caminha no dia 24.3.2015 com a intenção de chegarmos a Valença, mas tivemos que pernoitar em Vila Nova de Cerveira. Ao chegarmos a Vila Nova de Cerveira, o companheiro Mesquita sentiu que seu joelho esquerdo lesionou. No dia seguinte, 25.3.2015, fomos a dois médicos. A médica da manhã, clínica geral, recomendou que ele não continuasse a caminhada. O da tarde, médico ortopedista e especialista em desportos, autorizou continuar mediante anti-inflamatório e antibiótico, considerando sua excelente condição física. Tiro e queda, o peregrino manteve-se à frente. De quebra, diferentemente das outras cidades, quando chegávamos exaustos no final da tarde e saíamos no início da manhã do dia seguinte, desfrutamos de Vila Nova de Cerveira visitando um castelo medieval no centro, que ofereceu uma belíssima vista do rio que corta a cidade. Contemplamos a paisagem, relaxando um pouco frente a situação que estávamos enfrentando. Do hospital, onde fomos à tarde, também tivemos uma belíssima visão da cidade, pois que ficava numa parte elevada da cidade. Inclusive, num dos momentos de indefinição quanto à condição do peregrino Mesquita, fui até a Igreja da cidade, para acalmar a mente frente à possibilidade de seguir caminho sozinho, aproveitando para conhece-la.
O caminho entre Caminha e Vila Nova de Cerveira é um caminho de muitas subidas e descidas, tanto na urbanidade quanto entre os lugarejos. Os pontos mais altos ofereciam belas paisagens, que parávamos para contemplar e fotografar. Foram cerca de 14 km. A trilha peregrina, que agora nos associávamos até Santiago de Compostela, é quase sempre margeando ou a estrada de asfalto ou a estrada de ferro que ligavam as cidades. Nesse trecho, se consolidou a tônica das fotos: enquanto eu tirava fotos de marcos e símbolos católicos-cristianos, o peregrino Mesquita se deslumbrava com as flores que florescem na primavera. Todas as minhas fotos relativas à iconografia da igreja católica foram postadas no facebook antoniojose.lopesbotelho. Outras fotos da peregrinação você também visualizar nesse mural.
Ao sairmos de Vila Nova de Cerveira para Valença, dia 26.3.2015, demos demonstração inequívoca de nossa intenção para finalizarmos o caminho, vindo a chegar, conforme planejado, em Santiago de Compostela no dia 1.4.2015. Estava chovendo. E estávamos estressados com a indefinição do dia anterior. Ele, o amigo Mesquita, buscando uma posição médica definitiva, que veio com a consulta ao seu médico particular em Manaus; eu buscando redimensionar a mente para seguir caminho sozinho. Queríamos finalizar a peregrinação, e contamos com a ajuda e a motivação vinda de amigos de Manaus, via canal wahtsapp, que muito nos ajudaram com suas mensagens de força e determinação: Lincoln; Ivana; e Paulo José. O peregrino Augusto ofereceu uma grande colaboração depondo sobre sua experiência e nos presenteando com curativos e preventivos Compeed para bolhas.
Diálogo especial, dentre outros, foi travado com o amigo José Lúcio, que me desafiou a trazer de lembrança uma pedra do Caminho. Após chegar às suas mãos, fui brindado com um belíssimo poema intitulado ““Licença ao Poeta” (Pedra no caminho ... de Compostela”, que registra o seguinte no roda pé: “(Em homenagem ao Amigo Antônio Botelho, que de sua peregrinação no Caminho de Santiago de Compostela/Espanha, trouxe-me uma pedrinha que encontrou em seu caminho, presenteando-me com sua experiência única, mágica, divina. Manaus/AM, de 06.04.15)”. O poema você pode desfrutar integralmente no Anexo 1 desta crônica.
Apesar de termos começado o dia estressados, conseguimos vencer mais cerca 18 km até Valença, último rincão português do caminho que fizemos. Valença foi uma bela surpresa, pois seu centro é no interior de um forte medieval. Já estávamos na porta do solo espanhol. No dia seguinte, 27.3.2015, seguiríamos caminho para O Porriño, atravessando cedo da manhã uma belíssima ponte que liga Valença a Tuí. Lá, em O Porriño, tanto no almoço quanto no jantar, o peregrino Mesquita comeu bacalhau. Esse prato era o seu prato preferido. Eu ainda alternava com um salmão. Comíamos bem para recuperar a energia. Havia sempre um doce de sobremesa. De entrada, sempre um pão com azeite. Mas o vinho estava sempre presente. E sempre brindávamos, bebericando-o! Nesses momentos, levávamos muitos “papos cabeça”: o principal foi sobre o ponto a partir d’onde acontecia a grande transformação espiritual. O peregrino Mesquita defendendo o locus do coração; eu, o da mente. Por práticas e valores diferentes, não convergimos, ainda que admitindo que o Ser reside no coração.
A peregrinação começou efetivamente a entrar nas veias, pois pegamos a pegada. Acordar cedo, tomar café e seguir caminho. Foi o que fizemos em Valença para chegar a O Porriño. No início desse trecho, fomos orientados por um peregrino da Associação dos Amigos Peregrinos a desviar o rumo do trecho original, percorrido por dentro do distrito industrial, para um alternativo, em meio à natureza. Apesar de apreensivo, foi um dos mais belos trechos, pois todo ele dentro de um grande bosque. Valeu a pena ter caminhado a mais cerca de 2 ou 3 km, apesar do cansaço e das dores nos ombros, quadris e calcanhares, remediadas com anti-inflamatórios. Vencemos mais cerca de 22 km. Em O Porriño recebemos o carimbo na credencial (ou passaporte) do peregrino na Residencial Louro. Na saída de O Porriño comprei uma ceroula de compressão de poliamida, para conta dar conta do frio que fazia à noite, em torno de 10 graus, às vezes até menos. O clima durante toda a epopeia peregrina foi agradabilíssimo. Ganhei um cinto do vendedor, pelo que substitui o barbante que segurava as calças de tectel. Na oportunidade, compramos nossas conchas, nossas vieiras.
De o O Porriño seguimos o caminho até Redondela, vencendo mais cerca de 15 km. Era 28.3.2015. Em Redondela, dormimos pela primeira vez num albergue, no Albergue de Redondela. Nestas oportunidades, que foram três, a rearrumação da tralha de manhã cedo, mesmo já engatilha na noite passada, exigia destreza para ajustar o saco de dormir, roupas e demais apetrechos, e também atenção para não esquecer nada, ao mesmo tempo, procurando não incomodar os peregrinos que ainda descansavam. A decisão de desfrutar de quartos e banheiros individuais em casas e residenciais de hóspedes nos posicionou entre o que se chama de turigrinos e os peregrinos puros, que ficam sempre em albergues municipais. Mas isso não maculou, de forma alguma, nossa intenção espiritual. A despeito da tralha, vide Anexo 2. Foi uma excelente experiência dormir num salão lotado de peregrinos, dividindo banheiro e cozinha. Nesse albergue, o peregrino Mesquita teve um belo encontro com o senhor de 68 anos que estava fazendo sua oitava peregrinação. Ele lhe disse: “podemos perder tudo, menos a fé em Deus!”. Nesse albergue, avistamos aqueles com quem faríamos amizade: Nuno e Helena. Experientes em caminhadas, eles desfrutavam de mais uma peregrinação. Num trecho, percebi que pararam numa oficina mecânica, que tinha uns banquinhos em torno de um pequeno jardim, quando me convidaram para sentar. Iriam tomar um vinho branco com o proprietário. Mas, agradecendo, declinei, pois precisava avançar. Helena foi para mim uma bela surpresa, conforme registrei adiante. Nesse albergue, lavamos nossa roupa no atacado, pois eu vinha lavando no varejo, sempre com a ajuda de terceiros. Lavei cueca e camisa apenas duas vezes: logo na chegada à Viana do Castelo e em Valença. Em Caminha e Vila Nova de Cerveira contei, respectivamente, com a ajuda da Ana e da Fernanda, gerentes/proprietárias da Residencial Portas do Sol e da Residencial Fernanda Guerreiro, respectivamente, onde recebemos os carimbos concernentes no passaporte do peregrino. Mulheres gentis e generosas; Fernanda, inclusive, não me cobrou a lavagem de duas peças de roupas. Em Redondela, praticamente fechamos a quilometragem inicialmente programada na decisão tomada em 2014, de fazer o Caminho Português desde Tuí, de pouco mais de 100 km. Com a decisão em cima da hora de começar de Viana do Castelo, o trecho originalmente planejado foi alterado para cerca de 180 km, numa média diária de 20 km.
Chegamos a Pontevedra após caminhar mais 18 km desde Redondela. Era 29.3.2015. Em Pontevedra nos hospedamos na Pensão Maruja, onde recebemos mais um carimbo no passaporte do peregrino. Nesse trecho, percebemos uma mãe peregrinando com sua filha numa diferença de idades entre 30 a 40 anos. Foi uma bela visão de duas gerações num mesmo esforço fé e determinação. Voltamos a encontrá-las duas ou três vezes, mas em seguida não as vimos mais. Nesses trechos finais, encontramos com várias pessoas e grupos, variando entre estudantes universitários até empresários. Num desses trechos, compramos duas conchas, duas vieiras de um casal de idosos, para amigos que estão na ponta da agulha para irem peregrinar até Santiago de Compostela, e que só não foram desta vez por questões circunstanciais: Ivana e Paulo José. Também nesses trechos percebemos várias vezes a ocorrência de estarmos utilizando a Via Romana XIX, uma longa vereda romana milenar, onde passamos por belíssimas pontes construídas a dois mil anos atrás. Conhecemos a histórica Ponte Sampaio, palco da resistência galega frente ao avanço napoleônico no século XIX.
Chegamos a Caldas de Reis após caminhar mais cerca de 23 km. Era 30.3.2015. Em Caldas de Reis, enquanto o peregrino Mesquita desfrutava das águas termais que a cidade oferece relaxando os pés, eu cuidava das minhas primeiras bolhas. Aqui, aparece a meu anjo da guarda que furou, drenou e desinfetou minhas bolhas, localizadas do lado externo dos calcanhares direito e esquerdo e na sola do pé esquerdo, debaixo do calcanhar. Foi minha prima Helena, também Botelho. Ficamos sabendo dessa convergência em Santiago, depois que cruzamos as Compostelas. Aliás, outra coincidência, pois depois de Caldas de Reis seguimos espaços e tempos diferentes, mas nos encontramos exatamente na fila da Oficina do Peregrino para colher a Compostela. Num trecho, simplesmente, encontramos um bilhete do Nuno e da Helena, deixados no solo da trilha presos com pedras três horas antes, perguntando como estavam as bolhas. Fantástica a solidariedade que une os peregrinos no caminho. Em Caldas de Reis também pernoitamos num albergue. No Albergue Caldas de Reis, onde recebemos o carimbo em nossa credencial do peregrino.
Até Santiago de Compostela foram cumpridos mais dois trechos finais, que completaram os cerca de 180 km desde Viana do Castelo: de Caldas de Reis a Padrón, distantes uma da outra cerca de 19 km, que foi realizado em 31.3.2105; e de Padrón a Santiago de Compostela, distantes uma da outra cerca de 25 km, que foi realizado em 1.4.2015. Em Padrón, pernoitamos pela terceira vez num albergue. No Albergue de Padrón, onde mais uma vez recebemos o carimbo na credencial do peregrino. Um belíssimo albergue. Na minha opinião, o melhor dos três em que nos hospedamos. O de Redondela é muito bom e prático, pois o único que dispunha de lavadora de roupas. O de Caldas de Reis é simpático, com uma pequena pracinha na frente. A chegada em Padrón foi uma demonstração da amizade que o peregrino Mesquita nutre por mim, combinada com sua visão compassiva que adota na vida. Fiz esses dois últimos trechos com bastante sofreguidão, pois as bolhas incomodavam, sendo que uma dela inflamou e precisou ser novamente drenada em Santiago. E, mais uma vez, com a ajuda da prima Helena. Assim, ele estando mais à frente, chegou por primeiro no albergue. Não satisfeito, voltou para me resgatar pelo caminho. Nesse momento, estava andando bem devagar, já meu limite, no meu tempo, realizando o espaço possível. Quando saímos de Padrón tomamos café num recinto, cujo proprietário tem a tradição de tiras fotos dos peregrinos. Então, a nossa talvez esteja atachada numa das paredes daquele estabelecimento. Na chegada a Santiago, sempre à frente, parou num bar, pediu uma cerveja e ficou a me esperar para brindarmos a conquista. O percurso entre a cerveja, na entrada da cidade, e a Compostela, já na Oficina do Peregrino, me pareceu durar uma eternidade de tanta dor que sentia nos calcanhares.
Em Santiago, jantamos com os amigos Nuno e Helena. Compramos lembrancinhas para familiares e amigos. Voltamos para Lisboa de ônibus na sexta-feira santa dia 3.4.2015. Pegamos voos TAP/TAM de volta para Manaus, via São Paulo, no sábado dia 4/5.4.20015. Em Lisboa, onde pernoitamos, no IBIS Centro Saldanha, de 3 para 4.4.2015, ainda deu tempo para passear novamente de teleférico e revisitar o aquário gigante, representando a vida dos oceanos deste planeta, no Parque Vasco da Gama. Já havia desfrutado desse programa com a ricafilha Carolina, numa oportunidade passada, em 2008.
Em Santiago de Compostela, conseguimos a emissão da Compostela, na Oficina do Peregrino, somente possível quando a credencial está repleta de carimbos atestando o caminho peregrinado. A pé, de pelo menos 100 km. Também nesse posto, o carimbo na credencial foi mais uma vez efetuado. Lá, em Santiago de Compostela, fiz a doação, para uma senhora pedinte sentada numa das portas Catedral, da bota, do tapete térmico e dos dois cajados. A doação foi um pequeno símbolo de gratidão ao Universo pela oportunidade concedida de realizar a peregrinação. Na Catedral, não foi possível assistir à missa tradicional dedicada aos peregrinos com a cerimônia de incensação por meio de um sistema de cordas fixas no teto com turíbulo gigante como sempre celebrada ao meio dia, pois era quinta-feira santa. Mas assistimos, eu e o Mesquita, uma missa alternativa à data representativa do momento de crucificação/morte de Jesus Cristo, na qual o sermão foi centrado nos dez mandamentos, ditados no Antigo Testamento e sintetizados por JC nos Evangelhos de Mateus e de João, portanto, apresentando e discutindo a perspectiva de uma vida lastreada pelo aprendizado espiritual de “amar ao próximo como a si mesmo e a Deus acima de todas as coisas” frente à missão terrena de cada qual. Ainda na Catedral, abracei, como recomenda o protocolo de fé do peregrino, Santiago pelas costas, ao mesmo tampo, fazendo três pedidos, para que um seja concedido. À Catedral voltei mais uma vez na manhã de sexta-feira, dia 3.5.15, antes de pegar o ônibus para Lisboa, para, de novo, agradecer, agora em forma de oração, à conspiração favorável do Universo, que oportunizou a peregrinação e o seu sucesso.
Santiago de Compostela tem uma urbanidade tipicamente medieval. Suas edificações no entorno da Catedral possuem fachadas e calçadas de pedra lascada em tonalidades verde-cinzentas escuras, gastas pelo tempo. Suas ruas são estreitas e labirínticas; nelas me perdi quando retornei da compra de um par de sandálias alpercatas, para viabilizar a doação das botas e ainda facilitar a cura das bolhas que ainda incomodavam. Esse centro acomoda serviços de hotelaria, gastronomia, bares, de comércio, etc. Nos hospedamos no mesmo hotel onde estavam Nuno e Helena. Pernoitamos do dia 1 para 2.4.2015 e de 2 para 3.4.2015. No Hostal St. Cruz recebemos mais um carimbo na credencial do peregrino. Jantamos com Nuno e Helena, para celebrar o momento, no Restaurante Ribadavia, próximo ao hotel, onde também recebemos mais um carimbo no passaporte de peregrino. Aliás, somente a partir de Tuí passamos a pedir carimbos em lanchonetes e restaurantes, por recomendação de dois peregrinos que faziam o caminho desde O Porto de bicicleta. De tal sorte, que as nossas credenciais ficaram quase todas preenchidas, demonstrando literalmente nossa epopeia peregrina. Uma dessas foi especial: na Pastelaria Acunã, em Arcade, Soutomaior, entre Redondela e Pontevedra, de propriedade de casal de brasileiros baianos.
As caminhadas eram para mim subdivididas em três grandes momentos. Duravam, em média, entre 6 e 7 horas, de porta a porta, considerando as paradas para descanso, incluso fotografar e comer alguma coisinha. Ou seja, saíamos em torno das 9 h e chegávamos às 16 h. As duas primeiras horas eram de alegria. Alegria por estar peregrinando. Por estar na trilha. No caminho. O segundo momento era de reflexão e de contemplação. Mantrava, mantrava e mantrava: nesse momento mergulhava para o interior em busca do autoconhecimento. Finalmente, a última etapa era de cansaço, até mesmo de exaustão. Do desejo de chegar, tomar um banho, fazer as necessárias aplicações de gelo nos calcanhares – Mesquita cuidava do joelho esquerdo -, comer, descansar e dormir. Neste sentido, sempre procurávamos nos recolher cedo; nos albergues as luzes desligavam às 22:00h, à exceção do de Redondela, onde os jovens foram até às 23:00h conversando e rindo como que em estado de graça.
Mesmo que o peregrino Mesquita fosse sempre à frente, por sua condição física de melhor qualidade, estávamos sempre juntos. Conversávamos. Discutíamos. Mas estávamos sempre convergindo para e em comunhão com o momento precioso e auspicioso que vivíamos. Aprendemos muito um com o outro e aprofundamos nossa amizade, selada na Ponte Rio Negro, durante os treinos preparativos, de que não haveria frescura entre nós, de que procuraríamos ser honestos e verdadeiros um com o outro. Esse selo foi importante para vencer com alegria e prazer os momentos de dificuldades que advieram durante a caminhada em comum. O fato de ir à frente registre-se, era um motivador para que eu vencesse a distância e o cansaço, pois sempre vinha com o chamado: “Vamos peregrino! Vamos peregrino! Vamos peregrino!”. A minha preparação foi de dois meses, da segunda quinzena de janeiro de 2015 a primeira quinzena de março de 2015, e ficou a cargo do professor de educação física Saulo. Foi dimensionada em duas partes, aeróbica e muscular, três vezes por semana. Programação cumprida integralmente. Não faltou fôlego, mas sobrou dores nas articulações, especialmente nas dos calcanhares.
As setas, na maioria das vezes na cor amarela, que passamos a seguir desde o segundo trecho estabelecem uma forte associação com os sinais que a vida nos oferece. Às vezes fortes e claras, às vezes tênues e sutis, e até mesmo ausentes, mas subliminarmente sempre presentes. Estávamos sempre à procura delas para evitar o descaminho e o erro, o que faria perder tempo e aumentar a distância e o cansaço até o próximo albergue. Hora com a razão; ora com a intuição. Como acontece na vida. Exatamente igual. De forma equivalente, podemos fazer analogia com as pedras encontradas nas trilhas da peregrinação em comparação com os obstáculos que enfrentamos na vida, isto é, devemos desviar delas, para evitar tropeços. Sem apego nas vitórias. Sem aversão nas derrotas. O somatório delas aponta para a nossa experiência, pois são elas que nos fazem avançar na vida.
Na vida devemos cumprir uma dada missão, expressos por compromissos seculares. Profanidade. Contudo, sem perder de vista a perspectiva divina. Espiritualidade. Isso para quem adota essas duas vertentes existenciais, pois às vezes os humanos não se dão nem conta da existência secular quanto mais de uma existência espiritual. Há um forte simbolismo no chegar à Santiago de Compostela. A ideia, segundo meu entendimento, é cumprir a missão, o caminho em si mesmo, em vista da evolução e, sobretudo, da liberação do espírito. Ou seja, chegar à Compostela representa a realização espiritual. Simbolicamente falando, claríssimo, pois o caminho é longo e árduo. Idealmente, podemos nos dar conta de que já somos ilimitados e plenos; livres e imortais. Mas essa é outra conversa.
De qualquer sorte, essa simbologia estabelece uma sinergia positiva com os conceitos hindu-budista do karma e do Dharma. Ou seja, precisamos realizar ações no contexto da existência enquanto terráqueos, mas precisamos ao mesmo tempo realiza-las mirando a ordem cósmica. É o que podemos aceitar como significados dos conceitos institucionalizados no contexto cultural e espiritual do Caminho até Santiago de Compostela: ultreya e sustreya: vá em frente; vise o alto.
Finalmente, gostaria de registrar minha motivação pessoal, subdividida em duas, para fazer a peregrinação até Santiago de Compostela. Foi numa homenagem à minha origem cristã. Meus pais seguiram à sua maneira o cristianismo. Meu pai, Sebastião, foi espírita praticante, seguindo o Evangelho Segundo o Espiritismo por mais de 50 anos. Minha mãe, Maria Eliza, devota de Nossa Senhora a vida inteira, rezava, diariamente, o terço católico. Então, nasci e me criei num lar espiritualizado sob a ordem cristiana. Ainda que tenha me dado conta desta perspectiva existencial somente aos 46 anos, adoto a espiritualidade do Yoga lastreado pelo Vedanta como prática e caminho espiritual já por 10 anos. Entendo, portanto, que, assim como na peregrinação até Santiago de Compostela, como dizem os peregrinos, todos os caminhos levam à Catedral, todas as espiritualidades conduzem ao Brahman dos hindus, ao Deus dos cristãos, ao Javé dos judeus, ao Vazio Luminoso dos budistas e ao Alá dos mulçumanos, que ontologicamente são os mesmos e um só. Assim, para além dos dogmas religiosos, buscando as convergências entre as doutrinas e espiritualidades conexas, poderemos visualizar o portal para o amor e a compaixão entre os homens. Essa primeira motivação foi de ordem sagrada, digamos assim. A segunda foi de ordem profana, na medida em que estabeleci o desafio para enfrentar a condição de coronariopata desta forma ordinária, assim como foi quando decidi subir a Pedra Bonita e o morro Dois Irmãos, no Rio de Janeiro, em novembro da 2014, como parte da preparação para a peregrinação, junto com o Mesquita e o Paulo José, sob a liderança do guia Felipe, de Niterói. A ideia não é desafiar a morte, mas viver intensamente a vida, dentro do possível, com programação e prudência. O próximo sarrafo será subir o Monte Roraima, na tríplice fronteira Brasil/Venezuela/Guiana. Junto à estatística da Oficina do Peregrino consignei igualmente duas motivações: uma de ordem desportiva/cultural; outra espiritual, descartando a religiosa.
Um barato total! Parece paradoxal um programa que gera algum sofrimento e sobretudo muitas dores oportunizar alegria, contentamento e mesmo sabedoria. Mas é verdade! Acredite! Custo da brincadeira? Quase irrisório frente aos benefícios. Tudo em 3, 4, 5 e até mesmo 6 vezes, como as passagens, à exceção do dinheiro levado em mãos. Vale a pena! Recomendo!

Anexo 1:


“Licença ao Poeta”
(Pedra no caminho… de Compostela)
                                                   (J. Lúcio S. Pereira)
“No meio do caminho
Tinha uma pedra”

Assim anuncia
O poeta!

E eu,
Que não sou versador
Já licença peço

E
Digo

Que havia
No meio do caminho
Uma pedra…
De Compostela!

E o que mais
Poderia eu querer

Se no meio
De tantas pedras
Em meu caminho
Lá estava ela
Límpida, pura, enigmática!

Assim era
Pois,

A pedra
Que estava
No meio de meu caminho…
Pedra de Compostela!







Anexo 2:
A tralha foi composta de:
1.      Mochila 50 + 10 litros;
2.      Saco de dormir;
3.      Toalha grande superabsorvente;
4.      Toalha pequena superabsorvente;
5.      Tapete antitérmico;
6.      Sistema de hidratação de 3 litros;
7.      2 cajados;
8.      Relógio de pulso;
9.      10 sacos plásticos pequenos;
10.  1 par de botas;
11.  1 par de sandálias;
12.  2 pares de meias grossas;
13.  2 pares de meia finas;
14.  1 par de meia de compressão;
15.  3 cuecas de compressão de poliamida;
16.  2 calças-bermudas tectel;
17.  1 ceroula de compressão de poliamida (comprada em O Porriño);
18.  1 chapéu comum (comprado em Padrón);
19.  1 cinto de tecido (ganhado de presente no caminho);
20.  2 camisas segunda pele de manga longa;
21.  2 camisas tectel de manga longa;
22.  1 casaco fleece;
23.  1 casaco para chuva e vento;
24.  Chapéu com abas de proteção contra o sol (perdido no caminho);
25.  Telefone celular;
26.  Carregador de energia;
27.  Lanterna pequena;
28.  Fone de ouvido;
29.  Apito;
30.  5 metros de fio de nylon;
31.  Cachecol;
32.  1 par de luvas (não usada);
33.  Óculos escuros;
34.  Apetrechos de higiene pessoal (escova de dente; pasta de dentes; sabonete/sapão; manteiga de cacau);
35.  Documentos de identidade; cartão de crédito e dinheiro;
36.  1 bolsa self money;
37.  Remédios e curativos e preventivos para bolhas (parte comum);
38.  10 cachês de carbo-hidratos.

A mochila ficou pelo menos 1 kg mais pesada do que deveria, considerando o meu peso. Sai de Manaus com 9kg e 200 gramas. Idealmente, deveria ter ido com no máximo 8 kg, frente aos meus 75 kg. Mas não larguei apetrechos pelo caminho, assumindo integralmente a decisão do que levar. Ela certamente voltou mais leve, pois só os 10 cachês pesavam cerca de 800 gramas. Esse carbo-hidrato era o meu primeiro “almoço”, idealizado pela Cristina, minha esposa. O peso inicial certamente contribuiu para as dores e o cansaço, além do próprio desafio de caminhar cerca de 20 km por dia, para cumprir o total de 180 km em 9 dias. Mas valeu a experiência. Talvez tirasse 2 ou 3 itens não essenciais para trilhas equivalentes. Mas também poderia repetir a dosagem sem problema. Finalmente, faço alguns registros importantes: o sistema de hidratação, apesar de ter me dado problema molhando roupas, pois estava danificado, vazando, é superinteressante, pois permite beber água facilmente; as botas de aventura foram enquadradas como inadequadas, sendo recomendadas mesmo as especializadas de trilhas; o tapete térmico, mesmo não tendo sido utilizado para suprir falta de colchões para dormir, serviu para a prática de Yoga e meditação; e, os dois cajados foram de extrema valia, especialmente nas subidas, alavancando o deslocamento, e nas descidas, protegendo os joelhos. Mesmo no plano serviam de apoio, especialmente quando os calcanhares começavam a doer no último terço da caminhada diária.

A tralha, em sua maior parte, foi comprada com pela www.amazon.com com a ajuda do genro Germano e da ricafilha Carolina. Outra parte foi comprada por mim em Orlando e em Manaus. Dois itens o amigo Mesquita trouxe de São Paulo. Apenas um item comprei por site nacional. A bota, seminova, de aventura, já era minha companheira de outras viagens de férias. O protetor solar, parte comum, foi na mochila do peregrino Mesquita.