Impressões de uma peregrinação
Fiz
recentemente com o peregrino Antonio Mesquita o caminho português até Santiago
de Compostela desde Viana do Castelo. Foram nove etapas: Caminha; Vila Nova de
Cerveira; Valença; O Porriño; Redondela; Pontevedra; Caldas de Reis; Padrón. Portanto,
apenas um pequeno trecho – Viana do Castela/Caminha – pelo litoral; outro, no
sentido nordeste, entrando para o interior – Caminha/Vila Nova de Cerveira/Valença;
finalmente, já no interior do território, no sentido norte, em direção à
Santiago de Compostela, a partir de Valença. Pernoitamos uma noite em cada
cidade, à exceção de Vila Nova de Cerveira e Santiago de Compostela,
duas noites. Corria o tempo entre os dias 21 de março e 5 de abril deste ano de
2015. Escrevo esta pequena crônica 45 dias após o retorno, por memória,
consultando o passaporte do peregrino, dando conta de um registro histórico e
da saudade dos momentos de alegria e de tristeza, de prazer e dor que vivenciei
com o amigo Mesquita. Sem apego; sem aversão. O passaporte ou credencial do
peregrino nos foi concedido pelo Marcos Lucio, da Associação Paranaense dos
Amigos do Caminho de Santiago de Compostela – Curitigrinos, por correios, a
partir de uma articulação por e-mail. Consultei também o mapa fornecido pela
Curitigrinos, para confirmar as distâncias entre as cidades.
Partimos
pela TAP, de Manaus rumo a Lisboa, donde seguimos por trem até Viana do
Castelo. Em Viana do Castelo recebemos nosso primeiro carimbo no passaporte de
peregrino. Recebemos também de presente do gerente do Vianamar Residencial
broches comemorativos do Caminho de Compostela. O meu perdi durante a
peregrinação. Nela, no trecho entre Caldas de Reis e Padrón, perdi também o
chapéu de pescador, presente da ricafilha Catharina e do genro Armando. Mas,
ganhei muito, muito mais, como retrata esta crônica. Era 23.3.2015, quando
partimos para Caminha. Neste trecho nossa principal cabeçada de marinheiro de
primeira viagem, pois fizemos todo o trecho pela estrada. Mas foi igualmente
bom, apesar de duro e árido, não permitindo desfrutar das trilhas entre
bosques. Em alguns pontos da estrada, tínhamos uma bela visão do mar, do oceano
Atlântico. Nesse trecho, ouvimos, no silêncio da caminhada, os primeiros sons
das folhagens das árvores, que se batiam em decorrência dos ventos, o que veio
a se repetir várias vezes em outros trechos, inseridos na natureza. Foram cerca
de 29 km. Chegamos exaustos. Em Caminha, recebemos nosso segundo carimbo no
passaporte de peregrino.
Partimos
de Caminha no dia 24.3.2015 com a intenção de chegarmos a Valença, mas tivemos
que pernoitar em Vila Nova de Cerveira. Ao chegarmos a Vila Nova de Cerveira, o
companheiro Mesquita sentiu que seu joelho esquerdo lesionou. No dia seguinte,
25.3.2015, fomos a dois médicos. A médica da manhã, clínica geral, recomendou
que ele não continuasse a caminhada. O da tarde, médico ortopedista e especialista
em desportos, autorizou continuar mediante anti-inflamatório e antibiótico,
considerando sua excelente condição física. Tiro e queda, o peregrino
manteve-se à frente. De quebra, diferentemente das outras cidades, quando
chegávamos exaustos no final da tarde e saíamos no início da manhã do dia
seguinte, desfrutamos de Vila Nova de Cerveira visitando um castelo medieval no
centro, que ofereceu uma belíssima vista do rio que corta a cidade.
Contemplamos a paisagem, relaxando um pouco frente a situação que estávamos
enfrentando. Do hospital, onde fomos à tarde, também tivemos uma belíssima
visão da cidade, pois que ficava numa parte elevada da cidade. Inclusive, num
dos momentos de indefinição quanto à condição do peregrino Mesquita, fui até a
Igreja da cidade, para acalmar a mente frente à possibilidade de seguir caminho
sozinho, aproveitando para conhece-la.
O caminho
entre Caminha e Vila Nova de Cerveira é um caminho de muitas subidas e descidas,
tanto na urbanidade quanto entre os lugarejos. Os pontos mais altos ofereciam
belas paisagens, que parávamos para contemplar e fotografar. Foram cerca de 14
km. A trilha peregrina, que agora nos associávamos até Santiago de Compostela, é
quase sempre margeando ou a estrada de asfalto ou a estrada de ferro que
ligavam as cidades. Nesse trecho, se consolidou a tônica das fotos: enquanto eu
tirava fotos de marcos e símbolos católicos-cristianos, o peregrino Mesquita se
deslumbrava com as flores que florescem na primavera. Todas as minhas fotos
relativas à iconografia da igreja católica foram postadas no facebook
antoniojose.lopesbotelho. Outras fotos da peregrinação você também visualizar
nesse mural.
Ao sairmos
de Vila Nova de Cerveira para Valença, dia 26.3.2015, demos demonstração inequívoca
de nossa intenção para finalizarmos o caminho, vindo a chegar, conforme
planejado, em Santiago de Compostela no dia 1.4.2015. Estava chovendo. E
estávamos estressados com a indefinição do dia anterior. Ele, o amigo Mesquita,
buscando uma posição médica definitiva, que veio com a consulta ao seu médico
particular em Manaus; eu buscando redimensionar a mente para seguir caminho
sozinho. Queríamos finalizar a peregrinação, e contamos com a ajuda e a
motivação vinda de amigos de Manaus, via canal wahtsapp, que muito nos ajudaram
com suas mensagens de força e determinação: Lincoln; Ivana; e Paulo José. O
peregrino Augusto ofereceu uma grande colaboração depondo sobre sua experiência
e nos presenteando com curativos e preventivos Compeed para bolhas.
Diálogo
especial, dentre outros, foi travado com o amigo José Lúcio, que me desafiou a
trazer de lembrança uma pedra do Caminho. Após chegar às suas mãos, fui
brindado com um belíssimo poema intitulado ““Licença ao Poeta” (Pedra no
caminho ... de Compostela”, que registra o seguinte no roda pé: “(Em homenagem
ao Amigo Antônio Botelho, que de sua peregrinação no Caminho de Santiago de
Compostela/Espanha, trouxe-me uma pedrinha que encontrou em seu caminho,
presenteando-me com sua experiência única, mágica, divina. Manaus/AM, de
06.04.15)”. O poema você pode desfrutar integralmente no Anexo 1 desta crônica.
Apesar de
termos começado o dia estressados, conseguimos vencer mais cerca 18 km até
Valença, último rincão português do caminho que fizemos. Valença foi uma bela
surpresa, pois seu centro é no interior de um forte medieval. Já estávamos na
porta do solo espanhol. No dia seguinte, 27.3.2015, seguiríamos caminho para O
Porriño, atravessando cedo da manhã uma belíssima ponte que liga Valença a Tuí.
Lá, em O Porriño, tanto no almoço quanto no jantar, o peregrino Mesquita comeu
bacalhau. Esse prato era o seu prato preferido. Eu ainda alternava com um
salmão. Comíamos bem para recuperar a energia. Havia sempre um doce de
sobremesa. De entrada, sempre um pão com azeite. Mas o vinho estava sempre
presente. E sempre brindávamos, bebericando-o! Nesses momentos, levávamos
muitos “papos cabeça”: o principal foi sobre o ponto a partir d’onde acontecia
a grande transformação espiritual. O peregrino Mesquita defendendo o locus do coração; eu, o da mente. Por
práticas e valores diferentes, não convergimos, ainda que admitindo que o Ser
reside no coração.
A
peregrinação começou efetivamente a entrar nas veias, pois pegamos a pegada.
Acordar cedo, tomar café e seguir caminho. Foi o que fizemos em Valença para
chegar a O Porriño. No início desse trecho, fomos orientados por um peregrino
da Associação dos Amigos Peregrinos a desviar o rumo do trecho original,
percorrido por dentro do distrito industrial, para um alternativo, em meio à
natureza. Apesar de apreensivo, foi um dos mais belos trechos, pois todo ele
dentro de um grande bosque. Valeu a pena ter caminhado a mais cerca de 2 ou 3
km, apesar do cansaço e das dores nos ombros, quadris e calcanhares, remediadas
com anti-inflamatórios. Vencemos mais cerca de 22 km. Em O Porriño recebemos o
carimbo na credencial (ou passaporte) do peregrino na Residencial Louro. Na
saída de O Porriño comprei uma ceroula de compressão de poliamida, para conta
dar conta do frio que fazia à noite, em torno de 10 graus, às vezes até menos. O
clima durante toda a epopeia peregrina foi agradabilíssimo. Ganhei um cinto do
vendedor, pelo que substitui o barbante que segurava as calças de tectel. Na
oportunidade, compramos nossas conchas, nossas vieiras.
De o O
Porriño seguimos o caminho até Redondela, vencendo mais cerca de 15 km. Era
28.3.2015. Em Redondela, dormimos pela primeira vez num albergue, no Albergue
de Redondela. Nestas oportunidades, que foram três, a rearrumação da tralha de
manhã cedo, mesmo já engatilha na noite passada, exigia destreza para ajustar o
saco de dormir, roupas e demais apetrechos, e também atenção para não esquecer
nada, ao mesmo tempo, procurando não incomodar os peregrinos que ainda
descansavam. A decisão de desfrutar de quartos e banheiros individuais em casas
e residenciais de hóspedes nos posicionou entre o que se chama de turigrinos e
os peregrinos puros, que ficam sempre em albergues municipais. Mas isso não
maculou, de forma alguma, nossa intenção espiritual. A despeito da tralha, vide
Anexo 2. Foi uma excelente experiência dormir num salão lotado de peregrinos,
dividindo banheiro e cozinha. Nesse albergue, o peregrino Mesquita teve um belo
encontro com o senhor de 68 anos que estava fazendo sua oitava peregrinação.
Ele lhe disse: “podemos perder tudo, menos a fé em Deus!”. Nesse albergue,
avistamos aqueles com quem faríamos amizade: Nuno e Helena. Experientes em
caminhadas, eles desfrutavam de mais uma peregrinação. Num trecho, percebi que
pararam numa oficina mecânica, que tinha uns banquinhos em torno de um pequeno
jardim, quando me convidaram para sentar. Iriam tomar um vinho branco com o
proprietário. Mas, agradecendo, declinei, pois precisava avançar. Helena foi
para mim uma bela surpresa, conforme registrei adiante. Nesse albergue, lavamos
nossa roupa no atacado, pois eu vinha lavando no varejo, sempre com a ajuda de
terceiros. Lavei cueca e camisa apenas duas vezes: logo na chegada à Viana do
Castelo e em Valença. Em Caminha e Vila Nova de Cerveira contei,
respectivamente, com a ajuda da Ana e da Fernanda, gerentes/proprietárias da
Residencial Portas do Sol e da Residencial Fernanda Guerreiro, respectivamente,
onde recebemos os carimbos concernentes no passaporte do peregrino. Mulheres
gentis e generosas; Fernanda, inclusive, não me cobrou a lavagem de duas peças
de roupas. Em Redondela, praticamente fechamos a quilometragem inicialmente
programada na decisão tomada em 2014, de fazer o Caminho Português desde Tuí,
de pouco mais de 100 km. Com a decisão em cima da hora de começar de Viana do
Castelo, o trecho originalmente planejado foi alterado para cerca de 180 km,
numa média diária de 20 km.
Chegamos a
Pontevedra após caminhar mais 18 km desde Redondela. Era 29.3.2015. Em
Pontevedra nos hospedamos na Pensão Maruja, onde recebemos mais um carimbo no
passaporte do peregrino. Nesse trecho, percebemos uma mãe peregrinando com sua
filha numa diferença de idades entre 30 a 40 anos. Foi uma bela visão de duas
gerações num mesmo esforço fé e determinação. Voltamos a encontrá-las duas ou
três vezes, mas em seguida não as vimos mais. Nesses trechos finais,
encontramos com várias pessoas e grupos, variando entre estudantes
universitários até empresários. Num desses trechos, compramos duas conchas, duas
vieiras de um casal de idosos, para amigos que estão na ponta da agulha para
irem peregrinar até Santiago de Compostela, e que só não foram desta vez por
questões circunstanciais: Ivana e Paulo José. Também nesses trechos percebemos
várias vezes a ocorrência de estarmos utilizando a Via Romana XIX, uma longa
vereda romana milenar, onde passamos por belíssimas pontes construídas a dois
mil anos atrás. Conhecemos a histórica Ponte Sampaio, palco da resistência
galega frente ao avanço napoleônico no século XIX.
Chegamos a
Caldas de Reis após caminhar mais cerca de 23 km. Era 30.3.2015. Em Caldas de
Reis, enquanto o peregrino Mesquita desfrutava das águas termais que a cidade
oferece relaxando os pés, eu cuidava das minhas primeiras bolhas. Aqui, aparece
a meu anjo da guarda que furou, drenou e desinfetou minhas bolhas, localizadas
do lado externo dos calcanhares direito e esquerdo e na sola do pé esquerdo,
debaixo do calcanhar. Foi minha prima Helena, também Botelho. Ficamos sabendo
dessa convergência em Santiago, depois que cruzamos as Compostelas. Aliás,
outra coincidência, pois depois de Caldas de Reis seguimos espaços e tempos
diferentes, mas nos encontramos exatamente na fila da Oficina do Peregrino para
colher a Compostela. Num trecho, simplesmente, encontramos um bilhete do Nuno e
da Helena, deixados no solo da trilha presos com pedras três horas antes,
perguntando como estavam as bolhas. Fantástica a solidariedade que une os
peregrinos no caminho. Em Caldas de Reis também pernoitamos num albergue. No
Albergue Caldas de Reis, onde recebemos o carimbo em nossa credencial do
peregrino.
Até
Santiago de Compostela foram cumpridos mais dois trechos finais, que
completaram os cerca de 180 km desde Viana do Castelo: de Caldas de Reis a
Padrón, distantes uma da outra cerca de 19 km, que foi realizado em 31.3.2105; e
de Padrón a Santiago de Compostela, distantes uma da outra cerca de 25 km, que
foi realizado em 1.4.2015. Em Padrón, pernoitamos pela terceira vez num
albergue. No Albergue de Padrón, onde mais uma vez recebemos o carimbo na
credencial do peregrino. Um belíssimo albergue. Na minha opinião, o melhor dos
três em que nos hospedamos. O de Redondela é muito bom e prático, pois o único
que dispunha de lavadora de roupas. O de Caldas de Reis é simpático, com uma
pequena pracinha na frente. A chegada em Padrón foi uma demonstração da amizade
que o peregrino Mesquita nutre por mim, combinada com sua visão compassiva que
adota na vida. Fiz esses dois últimos trechos com bastante sofreguidão, pois as
bolhas incomodavam, sendo que uma dela inflamou e precisou ser novamente
drenada em Santiago. E, mais uma vez, com a ajuda da prima Helena. Assim, ele
estando mais à frente, chegou por primeiro no albergue. Não satisfeito, voltou
para me resgatar pelo caminho. Nesse momento, estava andando bem devagar, já
meu limite, no meu tempo, realizando o espaço possível. Quando saímos de Padrón
tomamos café num recinto, cujo proprietário tem a tradição de tiras fotos dos
peregrinos. Então, a nossa talvez esteja atachada numa das paredes daquele
estabelecimento. Na chegada a Santiago, sempre à frente, parou num bar, pediu
uma cerveja e ficou a me esperar para brindarmos a conquista. O percurso entre
a cerveja, na entrada da cidade, e a Compostela, já na Oficina do Peregrino, me
pareceu durar uma eternidade de tanta dor que sentia nos calcanhares.
Em
Santiago, jantamos com os amigos Nuno e Helena. Compramos lembrancinhas para
familiares e amigos. Voltamos para Lisboa de ônibus na sexta-feira santa dia
3.4.2015. Pegamos voos TAP/TAM de volta para Manaus, via São Paulo, no sábado
dia 4/5.4.20015. Em Lisboa, onde pernoitamos, no IBIS Centro Saldanha, de 3
para 4.4.2015, ainda deu tempo para passear novamente de teleférico e revisitar
o aquário gigante, representando a vida dos oceanos deste planeta, no Parque
Vasco da Gama. Já havia desfrutado desse programa com a ricafilha Carolina,
numa oportunidade passada, em 2008.
Em
Santiago de Compostela, conseguimos a emissão da Compostela, na Oficina do
Peregrino, somente possível quando a credencial está repleta de carimbos
atestando o caminho peregrinado. A pé, de pelo menos 100 km. Também nesse
posto, o carimbo na credencial foi mais uma vez efetuado. Lá, em Santiago de
Compostela, fiz a doação, para uma senhora pedinte sentada numa das portas
Catedral, da bota, do tapete térmico e dos dois cajados. A doação foi um
pequeno símbolo de gratidão ao Universo pela oportunidade concedida de realizar
a peregrinação. Na Catedral, não foi possível assistir à missa tradicional
dedicada aos peregrinos com a cerimônia de incensação por meio de um sistema de
cordas fixas no teto com turíbulo gigante como sempre celebrada ao meio dia,
pois era quinta-feira santa. Mas assistimos, eu e o Mesquita, uma missa
alternativa à data representativa do momento de crucificação/morte de Jesus
Cristo, na qual o sermão foi centrado nos dez mandamentos, ditados no Antigo Testamento
e sintetizados por JC nos Evangelhos de Mateus e de João, portanto,
apresentando e discutindo a perspectiva de uma vida lastreada pelo aprendizado
espiritual de “amar ao próximo como a si mesmo e a Deus acima de todas as
coisas” frente à missão terrena de cada qual. Ainda na Catedral, abracei, como
recomenda o protocolo de fé do peregrino, Santiago pelas costas, ao mesmo
tampo, fazendo três pedidos, para que um seja concedido. À Catedral voltei mais
uma vez na manhã de sexta-feira, dia 3.5.15, antes de pegar o ônibus para
Lisboa, para, de novo, agradecer, agora em forma de oração, à conspiração
favorável do Universo, que oportunizou a peregrinação e o seu sucesso.
Santiago
de Compostela tem uma urbanidade tipicamente medieval. Suas edificações no
entorno da Catedral possuem fachadas e calçadas de pedra lascada em tonalidades
verde-cinzentas escuras, gastas pelo tempo. Suas ruas são estreitas e
labirínticas; nelas me perdi quando retornei da compra de um par de sandálias
alpercatas, para viabilizar a doação das botas e ainda facilitar a cura das
bolhas que ainda incomodavam. Esse centro acomoda serviços de hotelaria,
gastronomia, bares, de comércio, etc. Nos hospedamos no mesmo hotel onde
estavam Nuno e Helena. Pernoitamos do dia 1 para 2.4.2015 e de 2 para 3.4.2015.
No Hostal St. Cruz recebemos mais um carimbo na credencial do peregrino.
Jantamos com Nuno e Helena, para celebrar o momento, no Restaurante Ribadavia,
próximo ao hotel, onde também recebemos mais um carimbo no passaporte de
peregrino. Aliás, somente a partir de Tuí passamos a pedir carimbos em
lanchonetes e restaurantes, por recomendação de dois peregrinos que faziam o
caminho desde O Porto de bicicleta. De tal sorte, que as nossas credenciais
ficaram quase todas preenchidas, demonstrando literalmente nossa epopeia
peregrina. Uma dessas foi especial: na Pastelaria Acunã, em Arcade, Soutomaior,
entre Redondela e Pontevedra, de propriedade de casal de brasileiros baianos.
As
caminhadas eram para mim subdivididas em três grandes momentos. Duravam, em
média, entre 6 e 7 horas, de porta a porta, considerando as paradas para
descanso, incluso fotografar e comer alguma coisinha. Ou seja, saíamos em torno
das 9 h e chegávamos às 16 h. As duas primeiras horas eram de alegria. Alegria
por estar peregrinando. Por estar na trilha. No caminho. O segundo momento era
de reflexão e de contemplação. Mantrava, mantrava e mantrava: nesse momento
mergulhava para o interior em busca do autoconhecimento. Finalmente, a última
etapa era de cansaço, até mesmo de exaustão. Do desejo de chegar, tomar um
banho, fazer as necessárias aplicações de gelo nos calcanhares – Mesquita
cuidava do joelho esquerdo -, comer, descansar e dormir. Neste sentido, sempre
procurávamos nos recolher cedo; nos albergues as luzes desligavam às 22:00h, à
exceção do de Redondela, onde os jovens foram até às 23:00h conversando e rindo
como que em estado de graça.
Mesmo que
o peregrino Mesquita fosse sempre à frente, por sua condição física de melhor
qualidade, estávamos sempre juntos. Conversávamos. Discutíamos. Mas estávamos
sempre convergindo para e em comunhão com o momento precioso e auspicioso que
vivíamos. Aprendemos muito um com o outro e aprofundamos nossa amizade, selada
na Ponte Rio Negro, durante os treinos preparativos, de que não haveria
frescura entre nós, de que procuraríamos ser honestos e verdadeiros um com o
outro. Esse selo foi importante para vencer com alegria e prazer os momentos de
dificuldades que advieram durante a caminhada em comum. O fato de ir à frente
registre-se, era um motivador para que eu vencesse a distância e o cansaço,
pois sempre vinha com o chamado: “Vamos peregrino! Vamos peregrino! Vamos
peregrino!”. A minha preparação foi de dois meses, da segunda quinzena de
janeiro de 2015 a primeira quinzena de março de 2015, e ficou a cargo do
professor de educação física Saulo. Foi dimensionada em duas partes, aeróbica e
muscular, três vezes por semana. Programação cumprida integralmente. Não faltou
fôlego, mas sobrou dores nas articulações, especialmente nas dos calcanhares.
As setas,
na maioria das vezes na cor amarela, que passamos a seguir desde o segundo
trecho estabelecem uma forte associação com os sinais que a vida nos oferece.
Às vezes fortes e claras, às vezes tênues e sutis, e até mesmo ausentes, mas
subliminarmente sempre presentes. Estávamos sempre à procura delas para evitar
o descaminho e o erro, o que faria perder tempo e aumentar a distância e o
cansaço até o próximo albergue. Hora com a razão; ora com a intuição. Como
acontece na vida. Exatamente igual. De forma equivalente, podemos fazer
analogia com as pedras encontradas nas trilhas da peregrinação em comparação
com os obstáculos que enfrentamos na vida, isto é, devemos desviar delas, para
evitar tropeços. Sem apego nas vitórias. Sem aversão nas derrotas. O somatório
delas aponta para a nossa experiência, pois são elas que nos fazem avançar na
vida.
Na vida
devemos cumprir uma dada missão, expressos por compromissos seculares. Profanidade.
Contudo, sem perder de vista a perspectiva divina. Espiritualidade. Isso para
quem adota essas duas vertentes existenciais, pois às vezes os humanos não se
dão nem conta da existência secular quanto mais de uma existência espiritual.
Há um forte simbolismo no chegar à Santiago de Compostela. A ideia, segundo meu
entendimento, é cumprir a missão, o caminho em si mesmo, em vista da evolução
e, sobretudo, da liberação do espírito. Ou seja, chegar à Compostela representa
a realização espiritual. Simbolicamente falando, claríssimo, pois o caminho é
longo e árduo. Idealmente, podemos nos dar conta de que já somos ilimitados e
plenos; livres e imortais. Mas essa é outra conversa.
De
qualquer sorte, essa simbologia estabelece uma sinergia positiva com os
conceitos hindu-budista do karma e do
Dharma. Ou seja, precisamos realizar
ações no contexto da existência enquanto terráqueos, mas precisamos ao mesmo
tempo realiza-las mirando a ordem cósmica. É o que podemos aceitar como
significados dos conceitos institucionalizados no contexto cultural e espiritual
do Caminho até Santiago de Compostela: ultreya
e sustreya: vá em frente; vise o
alto.
Finalmente,
gostaria de registrar minha motivação pessoal, subdividida em duas, para fazer
a peregrinação até Santiago de Compostela. Foi numa homenagem à minha origem
cristã. Meus pais seguiram à sua maneira o cristianismo. Meu pai, Sebastião,
foi espírita praticante, seguindo o Evangelho Segundo o Espiritismo por mais de
50 anos. Minha mãe, Maria Eliza, devota de Nossa Senhora a vida inteira,
rezava, diariamente, o terço católico. Então, nasci e me criei num lar
espiritualizado sob a ordem cristiana. Ainda que tenha me dado conta desta
perspectiva existencial somente aos 46 anos, adoto a espiritualidade do Yoga
lastreado pelo Vedanta como prática e caminho espiritual já por 10 anos.
Entendo, portanto, que, assim como na peregrinação até Santiago de Compostela,
como dizem os peregrinos, todos os caminhos levam à Catedral, todas as
espiritualidades conduzem ao Brahman dos hindus, ao Deus dos cristãos, ao Javé
dos judeus, ao Vazio Luminoso dos budistas e ao Alá dos mulçumanos, que
ontologicamente são os mesmos e um só. Assim, para além dos dogmas religiosos,
buscando as convergências entre as doutrinas e espiritualidades conexas, poderemos
visualizar o portal para o amor e a compaixão entre os homens. Essa primeira
motivação foi de ordem sagrada, digamos assim. A segunda foi de ordem profana,
na medida em que estabeleci o desafio para enfrentar a condição de
coronariopata desta forma ordinária, assim como foi quando decidi subir a Pedra
Bonita e o morro Dois Irmãos, no Rio de Janeiro, em novembro da 2014, como
parte da preparação para a peregrinação, junto com o Mesquita e o Paulo José,
sob a liderança do guia Felipe, de Niterói. A ideia não é desafiar a morte, mas
viver intensamente a vida, dentro do possível, com programação e prudência. O
próximo sarrafo será subir o Monte Roraima, na tríplice fronteira
Brasil/Venezuela/Guiana. Junto à estatística da Oficina do Peregrino consignei
igualmente duas motivações: uma de ordem desportiva/cultural; outra espiritual,
descartando a religiosa.
Um barato
total! Parece paradoxal um programa que gera algum sofrimento e sobretudo
muitas dores oportunizar alegria, contentamento e mesmo sabedoria. Mas é
verdade! Acredite! Custo da brincadeira? Quase irrisório frente aos benefícios.
Tudo em 3, 4, 5 e até mesmo 6 vezes, como as passagens, à exceção do dinheiro
levado em mãos. Vale a pena! Recomendo!
Anexo 1:
“Licença ao Poeta”
(Pedra no caminho… de Compostela)
(J.
Lúcio S. Pereira)
“No meio do caminho
Tinha uma pedra”
Assim anuncia
O poeta!
E eu,
Que não sou versador
Já licença peço
E
Digo
Que havia
No meio do caminho
Uma pedra…
De Compostela!
E o que mais
Poderia eu querer
Se no meio
De tantas pedras
Em meu caminho
Lá estava ela
Límpida, pura, enigmática!
Assim era
Pois,
A pedra
Que estava
No meio de meu caminho…
Pedra de Compostela!
Anexo 2:
A tralha
foi composta de:
1. Mochila 50 + 10 litros;
|
2. Saco de dormir;
|
3. Toalha grande superabsorvente;
|
4. Toalha pequena superabsorvente;
|
5. Tapete antitérmico;
|
6. Sistema de hidratação de 3
litros;
|
7. 2 cajados;
|
8. Relógio de pulso;
|
9. 10 sacos plásticos pequenos;
|
10. 1 par de botas;
|
11. 1 par de sandálias;
|
12. 2 pares de meias grossas;
|
13. 2 pares de meia finas;
|
14. 1 par de meia de compressão;
|
15. 3 cuecas de compressão de poliamida;
|
16. 2 calças-bermudas tectel;
|
17. 1 ceroula de compressão de
poliamida (comprada em O Porriño);
|
18. 1 chapéu comum (comprado em
Padrón);
|
19. 1 cinto de tecido (ganhado de
presente no caminho);
|
20. 2 camisas segunda pele de manga
longa;
|
21. 2 camisas tectel de manga longa;
|
22. 1 casaco fleece;
|
23. 1 casaco para chuva e vento;
|
24. Chapéu com abas de proteção
contra o sol (perdido no caminho);
|
25. Telefone celular;
|
26. Carregador de energia;
|
27. Lanterna pequena;
|
28. Fone de ouvido;
|
29. Apito;
|
30. 5 metros de fio de nylon;
|
31. Cachecol;
|
32. 1 par de luvas (não usada);
|
33. Óculos escuros;
|
34. Apetrechos de higiene pessoal
(escova de dente; pasta de dentes; sabonete/sapão; manteiga de cacau);
|
35. Documentos de identidade; cartão
de crédito e dinheiro;
|
36. 1 bolsa self money;
|
37. Remédios e curativos e
preventivos para bolhas (parte comum);
|
38. 10 cachês de carbo-hidratos.
|
A mochila
ficou pelo menos 1 kg mais pesada do que deveria, considerando o meu peso. Sai
de Manaus com 9kg e 200 gramas. Idealmente, deveria ter ido com no máximo 8 kg,
frente aos meus 75 kg. Mas não larguei apetrechos pelo caminho, assumindo
integralmente a decisão do que levar. Ela certamente voltou mais leve, pois só
os 10 cachês pesavam cerca de 800 gramas. Esse carbo-hidrato era o meu primeiro
“almoço”, idealizado pela Cristina, minha esposa. O peso inicial certamente
contribuiu para as dores e o cansaço, além do próprio desafio de caminhar cerca
de 20 km por dia, para cumprir o total de 180 km em 9 dias. Mas valeu a
experiência. Talvez tirasse 2 ou 3 itens não essenciais para trilhas
equivalentes. Mas também poderia repetir a dosagem sem problema. Finalmente,
faço alguns registros importantes: o sistema de hidratação, apesar de ter me
dado problema molhando roupas, pois estava danificado, vazando, é
superinteressante, pois permite beber água facilmente; as botas de aventura
foram enquadradas como inadequadas, sendo recomendadas mesmo as especializadas
de trilhas; o tapete térmico, mesmo não tendo sido utilizado para suprir falta
de colchões para dormir, serviu para a prática de Yoga e meditação; e, os dois
cajados foram de extrema valia, especialmente nas subidas, alavancando o
deslocamento, e nas descidas, protegendo os joelhos. Mesmo no plano serviam de
apoio, especialmente quando os calcanhares começavam a doer no último terço da
caminhada diária.
A tralha,
em sua maior parte, foi comprada com pela www.amazon.com com a ajuda do genro Germano e da
ricafilha Carolina. Outra parte foi comprada por mim em Orlando e em Manaus.
Dois itens o amigo Mesquita trouxe de São Paulo. Apenas um item comprei por
site nacional. A bota, seminova, de aventura, já era minha companheira de
outras viagens de férias. O protetor solar, parte comum, foi na mochila do
peregrino Mesquita.
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