quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

ESCALADA AO MONTE RORAIMA

Crônica de uma aventura ao monte Roraima, por Antônio José Botelho, 56, agora 57.
Durante o segundo semestre de 2015, programamos, eu e o caríssimo Antônio Mesquita, parceiro e companheiro da caminhada até Santigo de Compostela, a escalada ao monte Roraima sob a liderança da Adventures Roraima, firma experiente. Negociamos preços, organizamos a tralha, treinamos, procuramos entender o trajeto, conversamos com o mochileiro França, que já realizou a escalada 3 vezes e que ofereceu um depoimento valiosíssimo, compramos as passagens e apetrechos de tralha complementares, enfim, dia 21.1.2016 estávamos prontos para a aventura. Uma aventura, especialmente para mim, como você, que me lê, constatará até o final desta crônica!
A ansiedade era tanta, que esqueci o casaco corta vento em casa. Meu problema existencial não é de depressão, mas a ansiedade, decorrente por estar com o pé direito no futuro. Aquariano! O Yoga me ajuda a colocar os dois pés no presente. Mas o aprendizado é de longo prazo, e deve ser cumprido sem apego e sem aversão. O problema foi resolvido com a ajuda do mochileiro Wagner, que conhecemos no aeroporto de Boa Vista. Ele, a esposa e a filha de 8 anos retornavam da trilha a Machu Pichu, desde Cuzco. Manauara que adotou Boa Vista, Wagner foi muito generoso, levando-me para comprar um casaco alternativo. Em seguida, tomamos sorvete, papeando com vista para o rio Branco. Depois ainda nos levou para um rápido passeio pela cidade, nos deixando no shopping Roraima, onde lanchamos.
A generosidade já havia sido concedida pelo guia Francisco da Adventure Roraima, que ao fazer nosso traslado, levou-me para sacar dinheiro no autoatendimento do Banco do Brasil, para o pagamento final da aventura in cash. Francisco viria a ser muito presente e importante no momento em que lesionei o joelho esquerdo, conforme ratificarei adiante. De plano, registro a competência da Adventure quanto à organização e logística. O sistema de coleta e de destinação adequadas de resíduos sólidos é bastante responsável, compatível com a ética sustentável, que deveria ser observada e seguida por todos os programas de acesso ao monte Roraima.
Ficamos hospedados no Hotel Aipana, dentro do Programa 3 Nações, onde no dia 22.1.2016 haveria o briefing com o Magno, proprietário da Adventure Roraima. À noite, antes de dormir, o caríssimo Mesquita sugeriu, por recomendação de sua esposa Selma, que pedíssemos permissão, licença, autorização do Universo para realizarmos a escalada sob a proteção dos guias espirituais, especialmente quanto ao ataque de animais (aranhas; cobras; escorpiões), quanto a acidentes e chuvas. Assim o fiz! Cristina, minha esposa, quando disse que havia esquecido o casaco corta vento, que serve também para chuva, assegurou: “Não vai chover! ”. Dito e feito: só garoou no primeiro dia, já no topo. Todos torciam pelo sucesso da aventura; a ricafilha Carolina me disse, quando retornei, que rezou muito. Iza, professora de Yoga, antes de partirmos invocou ao Grande Espírito, para que nos acompanhasse. A ricaneta Maria Clara, na noite anterior, me presentou um canivete da melhor qualidade, que representa uma ferramenta de proteção profana. A proteção espiritual é importante, ainda que Ele esteja sempre presente, em todos os tempos e em todos os lugares, permeando tudo e todos desde além do tempo-espaço. E foi importante para irmos e voltarmos em paz, conforme expressa esta crônica.
Segundo Dia
Acordei cedo para tomar café, fazendo algumas séries de Saudação ao Sol. Tomei banho, fui tomar café. Em seguida, fui passear no hotel, ficando alguns minutos na piscina, observando os passarinhos. Gayatri mantra continuava em minha mente, assim como foi na maior parte do tempo das caminhadas e subida/descida que envolveu a aventura de escalar o monte Roraima.
Após fazer companhia ao Mesquita durante o seu café, fomos para o briefing, que levou cerca de 2 horas com as explanações, explicações e exigências do líder Magno, para que a escalada fosse realizada com prudência e em segurança. Suas orientações, após todos do grupo terem se apresentado, inclusive, relatando suas experiências em trilhas e expondo suas expectativas quanto ao escalar o monte Roraima, foram bastante reforçadas quanto aos pés, atenção quanto aos animais vis a vis mochilas, botas e barracas, com a insolação, e para que evitássemos excessos frente aos riscos envolvidos na escalada, relatando casos de resgate de helicóptero decorrentes de acidentes. Ao final, ofereceram um bolo e um presente, o romance Inia: uma aventura amazônica, de Marcela Marques Monteiro, para os aniversariantes, com direito a ‘parabéns para você’, dentre os quais estava eu, que faria 57 anos dia 31.1.2016. Na manhã do dia 27.1.2016, essa homenagem foi repetida para a Ju, que recebeu de presente um microssapinho preto, característico do monte Roraima. Por oportuno, registre-se que o coaxar dessa população sugeria uma sinfonia, audível com o silêncio. Aliás, no sentido da manutenção de condições auspiciosas, a ordem no monte Roraima é o silêncio. Fiquei satisfeito com a exposição do Magno, que visava, sobretudo, a segurança individual de cada um e coletiva do grupo.
Após o almoço, duas Vans nos levaram para a cidade de Santa Elena, na Venezuela. A viagem foi tranquila e aduana um pouco demorada, mas sem problemas. Após o check in no hotel, saímos para jantar num restaurante chinês, onde chegamos após uma boa caminhada. Observei uma espécie de toque de recolher, na medida em que restaurante fechou conosco dentro às 21 h. Notei, ainda, uma urbanidade decadente, qual a percepção que tive na visita à Havana, em Cuba. Mesmo que Santa Elena não seja capital, anos de recessão e não crescimento econômico implica, necessariamente, em decadência, sob a perspectiva do progresso sociotécnico.
Terceiro Dia
Após o café da manhã, saímos em caravana de 3 jipes em direção à comunidade nativa ­ habitantes autóctones da região; povo indígena pemon ­, para daí seguir caminhando por 13 km até o primeiro acampamento. Nessa comunidade, assinamos na direção local do Parque Nacional de Canaima, a entrada para a grande aventura de escalar – subir e descer – o monte Roraima. Essa comunidade, intitulada paraitepui, fica a 1.473 metros acima do nível do mar. Portanto, o desnível até o topo do monte Roraima é de algo em torno de 1.400 metros, conquistados em 3 estágios, conforme veremos a seguir. Os pemones acreditam que no monte Roraima repousa o espírito do filho de um encontro entre o sol e a lua, ocorrido numa noite rara. Essa sacralidade está ligada ao mito de Makunaima, cuja tradição é passada oralmente através das gerações. Vide a citação sobre Makunaima em Monte Roraima: uma ilha no céu, disponível em http://www.brasilnatural.net/destinos/pdfs/monte_roraima.pdf .
Esse primeiro trecho, diferentemente dos dois seguintes, é praticamente plano. No dia, o realizamos, contudo, sob um sol causticante. Ao chegarmos no acampamento, fomos direto para um banho nas águas super geladas no rio Pedra. Esse banho, junto com o repelente, amenizou as boas vindas dadas pelos mosquitos, bastante naturais nessa região. Esses banhos ficariam ainda mais e mais gelados nas próximas paradas.
Em Boa Vista, durante o briefing, fomos informados do número de nossas barracas. A nossa, minha e do Mesquita, recebeu o número 15. Seria nossa primeira dormida em barraca de toda vida, o que viria a servir de espaço-tempo para um bom aprendizado com a utilização consciente da não-aversão, sustentada com a tolerância pacífica.
As refeições (café; lanche durante as caminhadas; almoço e janta) foram todas da melhor qualidade, saborosas mesmo, considerando as condições de temperatura e pressão. Havia sempre uma combinação de carbo-hidrato com proteína para revigorar as energias. Os lanches eram sempre regados com frutas frescas: melancia, melão, abacaxi e maçã. Eu tinha adicionalmente uma barrinha de proteínas e um sache de mistura de frutas, cereais e legumes. De novo, a logística implementada pela Adventure Roraima amalgamada pela sua equipe sempre atenta tornou a aventura, para um neófito como eu, segura e, até mesmo, minimamente confortável.
Dividimos esse primeiro acampamento com outros grupos que seguiam ou que retornavam para e do monte Roraima. Após o jantar, já com a lanterna de testa, tomada emprestada do genro Armando, nos recolhemos cedo, como seria por toda a aventura, após a preleção do guia líder Francisco, que chamava a atenção para o horário do café e da partida, orientando quanto o que iríamos enfrentar no dia seguinte.
Quarto Dia
Como sempre, saímos cedo entre 7 h e 7 h 30 min. O segundo trecho de aproximação ao monte Roraima foi de cerca de 9 km. Todavia, ao contrário do primeiro, tivemos um estágio do que viria a ser a subida final, de extremo esforço para quem não tem coxas e costas de aço, como os nativos, que parecem deslizar sobre as pedras, tanto subindo quanto descendo, carregando todo o material de apoio, barracas, comidas, e as mochilas contratadas para serem carregadas. Aqui destaco em especial, o nativo Francisco, que carregou a minha mochila principal. Essa capacidade de ir e vir com facilidade ao monte Roraima também já está absorvida pelos guias da Adventure Roraima, que no caso do nosso grupo foram: a Ana, de São Paulo, Francisco, de Boa Vista, e Jésika, da Venezuela.
Fazíamos duas ou três paradas técnicas para descansar. Numa delas comíamos as frutas frescas. Elas eram literalmente servidas, numa mordomia toda especial. Elas caiam realmente como uma luva para revigorar as energias. Assim como no primeiro trecho, parávamos também para tirar fotos. Tirei mais de 300 fotos, na máquina tomada emprestada do genro Germano; na realidade de sua filha, Isadora.
Durante essas paradas e até mesmo durante as caminhadas, subida e descida, íamos aprofundando os contatos, as novas amizades com os integrantes do grupo. O grupo naturalmente se dividia em 3: tinha a turma da frente, dos mais bem preparados; o pessoal intermediário, no qual me encaixei a maioria das vezes; e a turma mais lenta, porém, não menos corajosa e determinada. Eu sempre começava com a turma da frente, mas antes da primeira hora já ficava para trás. Muitas e muitas vezes caminhava sozinho, longe de todos, e até mesmo dos guias. No entanto, nunca solitário, pois estava sempre a mantar o Gayatri, que me acompanhou por toda a aventura ao monte Roraima, e que me acompanhado no caminho ióguico. Trata-se de um mantra espacialíssimo, sagrado e poderoso, que tem tudo a ver com tudo o que estava antes da criação, permanece durante toda a manifestação e continuará presente após a dissolução; sob a proteção d’Ele e meditando n’Ele podemos migrar do irreal para o real. Com Ele tive alguns insights que registrarei adiante.
Dividi o grupo que compôs a escalada ao monte Roraima por profissões: havia o subgrupo de 5 médicos: Dani, cirurgião pediatra; João, neurologista; João psiquiatra, Ju, nutróloga; e Sasha, cirurgião vascular; outro subgrupo era o maior e todos trabalhavam com a terra, fornecendo insumos e gerando produtos; estudaram juntos e estavam se revendo depois de longo tempo: Ana, Bira, Dani, Dudu, Mário e Raquel. Havia dois casais: a Anita e o Alex, franceses; e o Danilo e a Carol, mineiros, especialistas em TI, que fizeram faculdade juntos. Havia, ainda, a Rose, professora de botânica, que fez boa parte da caminha de acesso comigo no pelotão intermediário. Além desses, havia eu e o Mesquita, biólogo. O Mesquita, assim como no caminho até Santiago de Compostela, bem preparado fisicamente, fazia parte do pelotão de frente.
Com o Dudu e o Mário travei prosas sobre coisas sobrenaturais e expectativas espirituais. Esses temas não me cansam, ao contrário, me aninam. Senti muito carinho por parte do João (neurologista), que sempre me incentivava, reconhecendo meu esforço e perseverança. As orientações de Sasha, experiente mochileiro, foram fundamentais para que não viesse a ter bolhas. Fiquei sabendo, nas conversas com a Ju, que ela já praticou Yoga, pelo que, de plano, a incentivei a retornar. Sasha e Ju são casados. Os papos com a guia Ana, mostraram uma pessoa autoconfiante e convicta de seus valores. Foi uma surpresa agradabilíssima dialogar com o guia líder Francisco sobre o professor Milton Santos, acadêmico já falecido de alto quilate, cujos conceitos e ideias consubstanciam parte do meio entendimento sobre o Projeto Zona Franca de Manaus (ZFM).
Quinto Dia
Ao final do segundo trecho da caminhada chegamos ao acampamento base, a partir de onde faríamos a subida final até o topo do monte Roraima, pela entrada topo tepui, passando pela rampa, com trechos de inclinação de até 75º, pelo el carro (maverick) e pelo paso de las lagrimas, vazio tanto na subida quanto na descida em função de que não havia chuva. Essa subida sim seria o teste cardiovascular principal da escalada ao monte Roraima. Seria cerca de 4,5 km de extensão de subida bastante íngreme. Boa parte dela feita com ajuda das mãos, de galhos de árvores e de pedras e rochas. Extenuante, mas a chegada ao topo oportuniza um êxtase todo especial, notadamente para um coronariopata.
Tepui significa, segundo Emilio Pérez & Adrian Warren, em seu Mapa Monte Roraima, primeira edição, 2002:
Tepui é uma palavra de origem pemon que significa Monte ou Montanha. A palavra tepui sozinha é utilizada pelos indígenas da família linguística pemon. Em outras etnias da Amazônia venezuelana se utiliza em seu lugar a ‘Jidi’. Um tepui (plural: tepuis) é um tipo de formação montanhosa, morro ou maciço do Escudo Guianês, com forma de meseta ou não, constituído de rochas sedimentares (arenito, quartzo) e/ou ígneas, que alcançam uma altitude mínima de 1.000 msnm e uma máxima de 3.015 m msnm. Além disso, um tepui apresenta em suas encostas e cumes um clima úmido chuvoso, ecossistemas de média e alta montanha, o que diferencia claramente esse tipo de montanha tropicais, por apresentar uma variedade de comunidades vegetais e animais únicas (endêmicas).
O monte Roraima se localiza nos tepuis orientais, e, juntamente com o Kukenan, são os únicos que possuem rotas de ascensão a pé, os quais já foram também ascendidos com técnicas de escalada em rocha. Portanto, subimos e descemos, a pé, o tepui Roraima, de cerca de 2.800 metros acima do nível do mar, e sua superfície é de aproximadamente de 34,38 km2, segundo Pérez&Warren.
O acampamento base oferecia menores condições de apoio do que o acampamento anterior, onde a comida era preparada num abrigo fixo com cobertura e uma pequena varanda. Já no acampamento base a comida era preparada num abrigo de lona, numa espécie de tenda armada com esse propósito, que passava a ser a base da equipe da Adventure Roraima. Mas nem por isso a comida ficava menos saborosa, apesar das condições não-urbanas, considerando, ainda, a fome e a necessidade de repor as energias.
No acampamento base também tivemos um super banho para lavar as partes num riacho mega gelado.
A subida, como dito, foi uma experiência única, onde lançamos mão de toda nossa energia e atenção. Havia também as paradas técnicas para repor o fôlego e repor a água nos cantis, quando o uso de cloro para purificação algumas vezes é indispensável. Os trechos eram conquistados paulatinamente, os quais recebem seus apelidos, em função do grau de dificuldade: da titia; da vovó. Eu diria que, o último lance, seria o da bisavó, pois íamos praticamente nos arrastando no final da ascensão até o topo, especialmente os menos preparados fisicamente e/ou mais pesados corporalmente.
Sexto Dia
Antes de finalizarmos o 5º dia, após a chegada ao topo do tepui Roraima, fomos tomar banho em banheiras naturais com super mega geladas, alcunhadas de ‘jacuzzis’, que além de anestesiar as dores do corpo, revigora as energias. Nessa caminhada, pegamos o único dia de chuva. Na realidade, uma pequena garoa, conforme já dito.
Após uma caminhada extra de 1,5 km, chegamos ao hotel de infinitas estrelas, onde nos hospedamos por 3 belas noites, dormidas de forma meia sola. De forma incompleta, pois virando para a esquerda e para direita, intermediando em decúbito dorsal, sonecando, acordando, rocando e peitando dentro do saco de dormir. Mas feliz, muito feliz por estar vencendo o desafio auto imposto como coronariopata para conhecer um local auspicioso e de muita energia. Os hotéis ficam em cavernas com parapeitos, que oferecem abrigo do sol, do vento e das chuvas para as barracas. Seu teto, contudo, é o Universo!
O primeiro dia no topo foi tirado para ir até o marco geográfico que registra a fronteira tríplice Brasil-Guiana-Venezuela. Lá deixei com alegria uma bandeira da Pátria, que nos servia durante os jogos da Copa do Mundo. É verdade, usamos muito pouco os símbolos nacionais, e é com eles que construímos a nação, a brasilidade.
Antes do ponto geográfico fronteiriço, tomamos banho em águas puríssimas num poço cuja fonte vem do Vale dos Cristais, que também visitamos. De novo, águas super mega geladas. E mais um belíssimo lugar. Sempre tirando fotos; sempre apreciando as paisagens. Via imagens à toda hora, a representar nomes e formas ancestrais, nas rochas&paredões e nas formações das nuvens. Os cristais simplesmente afloram, apontando para a riqueza mineral que o tepui Roraima ainda deve albergar. No início dessa caminhada, Francisco, o guia líder, considerando as condições climáticas favoráveis, nos levou para um mirante, uma espécie de enseada definida pelos paredões do tepui Roraima, onde as nuvens ficam aprisionadas. Um deslumbre!
Nesse trecho, lesionei o joelho esquerdo. Ao pular um pequeno desnível, ao invés de descer como vinha fazendo, o hiperfleti como que quase fraturando. O core fatigado e o peso da mochila de ataque contribuíram para ampliar o risco da desatenção. Estava confiante, pois tinha superado as caminhadas e a subida. Mas nesse quesito fica o aprendizado: a atenção deve ser permanente! Após o almoço no El Foso, outro lugar especialíssimo, com o corpo frio, o joelho começou realmente a doer. Francisco, o guia líder, foi fundamental na reta final de retorno ao hotel de estrelas infinitas, pois me dava a mão para subir e descer todo desnível que viesse exigir mais do joelho. Apesar do atraso, chegamos primeiro que o grupo, que se perdeu na névoa e na neblina que o tepui Roraima produz permanentemente. O primeiro momento do retorno foi em companhia das guias Ana e Jésika, que igualmente me dedicaram atenção. À Jésika, preocupada com o meu coração, disse que minha mente estava atenta e alerta.
Como resultado perdi o passeio do dia seguinte ao mirante ‘A Janela’, pois precisei ficar de molho, descansando e recuperando para a grande descida. Em troca, ganhei o primeiro rascunho desta crônica, finalizada agora, durante o carnaval. Descansei o corpomente com pequenos momentos de reflexão sobre os acontecimentos e aprendizado decorrente da aventura de escalar o tepui Roraima. Adicionalmente, meditei utilizando o ajapa So Ham, como sempre faço. Este mantra, igualmente sagrado e poderoso, revela Tudo! Aproveitei a oportunidade para organizar minimamente a tralha, já meio que bagunçada. Nessa noite, o jantar me foi servido na barraca, o que demonstra a atenção que a equipe da Adventure Roraima dedica para com seus clientes. Aproveitei, ainda, para iniciar a leitura do romance que ganhei de presente, e que continuo aqui em Manaus. Registro que estava atento ao músculo nobre e com foco nos pés para evitar bolhas, mas foi o joelho esquerdo lesionado que se fez presente. As noites, em geral das 19 às 20 horas, eram desfrutadas contemplando as estrelas, ou papeando sobre as experiências e as vidas de cada qual e de todos numa roda. O frio não era polar e glacial com as águas em que nos banhávamos, mas exigia ceroula, segunda pele e fleece básicos. Um um gorro pegava bem. Entre 5º e 10º à noite; entre de 10º e 15º durante do dia. 
Sétimo Dia
Conforme dito acima, este dia foi todo dedicado a “parar” e ficar sem fazer “nada’. Isso traz um bom significado para o nosso cotidiano, na medida em que é bom parar, não fazer nada e observar os papéis que desempenhamos em nossa existência. Verificar o karma, enquanto lei universal de causação; aquilatar o Dharma, enquanto perspectiva de aproximação com a Ordem cósmica.
Descanso e recuperação, afinal a grande descida iria exigir muito da estrutura esquelético-muscular, notadamente do joelho lesionado. A mente precisaria se manter firme. O coração, tranquilo, especialmente por hospedar o Ser numa forma ordinária perecível-impermanente, mas fundamental e essencial para a realização do autoconhecimento. Neste momento da crônica aproveito para socializar e comentar os insights:
O MUNDO ESPIRITUAL É AINDA MATERIAL MESMO QUE MENOS GROSSEIRO E MAIS SUTIL. PORTANTO, PERMANECE SUBMETIDO AO TEMPO!
Comentário:
Essa é uma afirmação que li em algum texto do Budismo Tibetano. Naquele momento, a ‘ficha não caiu’. Mas, ‘passei o cartão’ contemplando o tepui Roraima, durante os vários momentos em que durante as caminhadas estava só, porém, nunca solitário. Como disse acima, sempre acompanhado do Gayatri mantra.
O insight, para mim, faz todo o sentido, pois a liberdade e a imortalidade, que se realiza com o autoconhecimento, só é possível para além do tempo. O mundo espiritual engendra, ainda, algum espaço. Assim, do ponto de vista do Ser, de Sat-Cit-Ananda, não faz sentido adjetivar por exemplo Luz, de divina, pois Tudo é Um Só! A adjetivação não-profana da Luz, como divina, está associada aos nomes e formas perecíveis e impermanentes. Essa percepção torna mais e mais incompreensível e inaceitável a equação vedantina Atman é idêntico à Brahman. Isso, contudo, não afasta a proteção que recebemos de seres espirituais, que absorveram grande conhecimento e dedicam sua existência não-secular para a iluminação, libertação e salvação de todos os seres.
DO CONFLITO: ESSENCIAL VERSUS NECESSÁRIO VERSUS SUPÉRFLUO
Comentário:
Essas correlações foram pensadas durante a caminhada até Santiago de Compostela, mas foram ratificadas durante a escalada ao tepui Roraima. A busca do supérfluo nos aprisiona na luxúria. Os sistemas de propriedade e de acumulação de bens criados pela humanidade oportuniza a diferença social pela posse, que pode ser expressa pelo conforto e segurança. Nesse mundo de status e títulos, que todos nós buscamos, os sentidos externos estão comandados pelo ego. Nessa dimensão, visamos o futuro para como conformar a manutenção das coisas e bens acumulados, ampliando-os.
A ponte entre os extremos da luxúria e do essencial é o caminho do meio, como plataforma existencial modesta. Uma existência pautada no necessário possibilita espaço-tempo para trabalhar o equilíbrio para a boa qualidade de vida.
O essencial traz consigo, todavia, um grande aprendizado, pois aponta para a sobrevivência. Ele nos afirma no momento presente, no aqui e agora, quando podem aflorar a solidariedade, ao invés da competição do outro extremo. As experiências isoladas, qual escalar o tepui Roraima, realizadas necessariamente fora do mundinho urbano, nos leva a observar de longe os cotidianos intrínsecos associados às posses e aos títulos, portanto, ao status social e econômico, para visualizar o caminho do meio. Idealmente, podemos lançar mão de coisas e bens em excesso, abrindo espaço-tempo para novas energias reparadoras e, sobretudo, transformadoras.
Esta forma ordinária continua no passo da unidade desde quando tomou consciência das rachaduras do tecido social com a leitura da doutrina política anarquista, que aponta para a solidariedade em detrimento da competição econômica: uma casa; um carro; uma conta bancária. Uma experiência civilizatória lastreada pela autogestão, contudo, só poderá ser efetivamente realizada quando os venenos que escondem o Ser no músculo nobre forem extirpados por transmutação: regozijo ao invés de inveja; a compaixão ao invés da ganância, e, sobretudo, o Conhecimento ao invés da ignorância. Até lá, o diálogo karma versus Dharma continua compatível com o atual estágio de evolução espiritual da humanidade.
ENFRENTAR OS DESAFIOS POR APROXIMAÇÕES SUCESSIVAS É UMA BOA ESTRATÉGIA
Comentário:
Muitas e muitas vezes temos que enfrentar, durante nossas vidas, metas, objetivos, projetos complexos e duros. Nunca devemos; nunca deveríamos desistir, a menos que por motivo de força maior. Devemos observa-los, estuda-los e investiga-los, pois aos poucos vamos dominando a questão e sua ambiência.
Ao me deparar, ao me aproximar do tepui Roraima, me perguntava como iria destrinchar a encrenca, o abacaxi da escalada até o topo. Não obstante, à medida da subida em que se dava a ascensão, percebi que de degrau a degrau, passo a passo, o desafio ia se desconstruindo, o paredão ia ficando menor, se encurtando, se estreitando. A grande decisão é dar o primeiro passo, encarando o desafio de frente. E, como num passo único de mágica, lá estava eu: no topo!
Minha consciência sobre a ZFM é resultado de uma observação, de um estudo e de uma investigação que já dura duas décadas. Nesse tempo, consegui transcender sua dimensão de um modelo, de um fim em si, para a de um projeto, de um meio para si, desvendando sua natureza intrínseca, segundo valores do autodesenvolvimento. Suas evidências positivas apontam para um crescimento econômico dependente de vantagens competitivas estáticas, para a atração de capital e tecnologia exógenas. Na lógica capitalista, o que faz sentido é a acumulação de lucros e a apropriação de conhecimento, caso contrário, os cidadãos do local dependente se tornam de segunda categoria.  
A Descida
O sétimo dia foi programado pela Adventure Roraima para a grande descida. A descida representa fazer o segundo e o terceiro trecho de ascensão numa só lapada. Foi bom ter descansado em função da lesão no joelho, do ponto de vista da grande descida. Descer significa exigir muito dos joelhos, os quais seriam protegidos com coxas de aço, o que não é meu caso. Então, me preparei psicologicamente para descer, afirmando positivamente para a mente essa possibilidade e necessidade. Passei a tomar Torsilax de 12 em 12 horas, com o aval do Sasha, e lancei mão de duas joelheiras.
Cheguei ao acampamento base sozinho, após descer a maior parte em companhia da Raquel, que avançou na reta final. Lancei mão da bunda, para escorregar quando o espaço não oferecia galhos e pedras para o suporte. Na oportunidade, muitos mochileiros, de diferentes grupos, subiam, quando percebia o quanto já havia desfrutado do tepui Roraima. Quando cheguei ao acampamento base, lá já estava o pelotão de frente. Em seguida, chegaram todos. Todos buscavam descansar à sombra.
Depois de almoçar, saí no primeiro pelotão, que acompanhei apenas por poucos minutos, ficando para trás, sozinho. Quando estava sozinho, como disse, nunca estava solitário, pois continuava a mantrar o Gayatri. Sempre. Adiante o guia Francisco me fez companhia, avaliando meu estado e orientando o sentido correto do caminho. O sentido da direção era uma só; a margem de erro é muito pequena. Não há desvios. Ainda assim, ao invés de contornar a base de um morrinho, subi, o que exigiu nova descida, ainda que muitíssimo menos extenuante. Mas, poderia ter sido evitado.
Cheguei ao acampamento do rio Kukenan muito lentamente. Passo após passo; sozinho. Todo dolorido; cansado. Imediatamente, fui tomar banho em suas águas hiper geladas. Lá já estavam os mochileiros do pelotão de frente, que comemoraram a minha chegada, parabenizando minha determinação. Foram 16 km desde o hotel estrelas infinitas!
Após o contato com a mochila e com a barraca, tomamos cerveja quente para festejar o avanço. Afinal só faltava o último trecho de 13 km até a comunidade nativa. Cada cerveja valia $ mil pesos bolivarianos, o que representa algo em torno de R$ 5,00, demonstrando a perda do poder aquisitivo da moeda venezuelana. A propósito, o câmbio de R$ 500,00 para pagar o carregamento da mochila principal e para despesas pessoais, exigiu um monte de dinheiro; uma dinheirama.
Como sempre acontecia durante o programa, o guia líder Francisco fazia sua preleção e fomos dormir cedo, após um macarrão com atum. Desta vez, saímos um pouco mais cedo, antes do sol nascer, para evitar insolação. A previsão era chegar antes das 10 h, com 4 horas de caminhada. Minha caminhada nesse último trecho foi propositalmente lenta e sempre atenta. O realizei sem grandes dores e sofrimento, como aconteceu no momento da lesão no joelho esquerdo, na visita ao marco fronteiriço, e na grande descida, no dia anterior. A maior parte do trecho foi realizado com a Deni (cirurgiã pediatra), com quem ratifiquei o insight do essencial abortar no aqui e agora. Deni foi uma guerreira, pois me confessou que foi a primeira grande trilha finalizada. Ou seja, as duas outras experiências negativas não foram suficientes para faze-la desistir. Nunca. Sempre que possível avançar. Essa é a Ordem. Estamos condenados à liberdade e à imortalidade!
Registro especial para a outra Dani (agrônoma), que fez esse último trecho de chinelo, em função das múltiplas bolhas que seus pés fizeram. Outra heroína! Observei também que o João (neurologista) também fez bolhas, o que provocou algumas vezes deixar o pelotão de frente. Sempre resistindo; nunca reclamando, venceu a escalada ao tepui Roraima. Todos, cada qual ao seu modo, vencemos!
Enfim, chegamos na comunidade nativa, assinamos o ponto de saída do Parque Nacional Canaíma, assim como fizemos no início, pela entrada. Tomamos cerveja, agora gelada para comemorar o sucesso da aventura de escalar o tepui Roraima. No total, foram cerca de 80 km. Tiramos uma bela foto com todos os guias e nativos de apoio, inclusive o Francisco, que carregou minha mochila principal e que foi presenteado com a minha mochila de ataque, uma calça de poliamida e uma papete e outros coisas e apetrechos menores.
Após almoçarmos na localidade São Francisco, onde comprei uma pedra para a Cristina, para mim e para o Dudu, uma corujinha de arenito para a coleção da ricaneta Maria Clara e uma lembrança, um pequeno artesanato também em arenito da Gran Savana, para um amigo, deu-se a viagem para Boa Vista. A aduana se processou sem maiores problemas, salvo as influências de uma cultura que nega o coletivo, conforme observou e protestou o Sasha. Jantei no hotel mesmo, limpei a mochila e as botas. Dormi. Ao acordar fui tomar café e nadar. Em seguida a um papo cabeça com o Mesquita, fui ao shopping Páteo comprar presentes para as ricanetas. No aeroporto, comprei camisetas para os genros; da senhora idosa, super gentil, que me atendeu, ganhei bombons de chocolates, que ofereci para as ricafilhas, e um pequeno artesanato de Boa Vista, que dediquei para a Tainara, colega da Suframa, que me forneceu o contato com o Magno. No voo, vieram, ainda, o Danilo e Carol, que receberam carona do Mesquita. No aeroporto, a Cristina e a ricaneta Maria Clara me aguardavam. A vida, agora, volta seu curso normal, com um cotidiano a ser reconstruído a partir do aprendizado e do conhecimento acumulados e oferecidos pelo tepui Roraima. Que assim seja!

Nota: A tralha foi basicamente a mesma da de Santiago de Compostela, adicionada de 3 camisas de manga comprida com proteção solar, que se mostraram bastante úteis, dois jogos de calções e camisetas de ginástica de poliamida e uma ceroula de algodão, aproveitando o jogo do carregamento contratado associado ao uso de uma mochila de ataque. Usei tudo que levei, à exceção de uma segunda pele, para o frio, que se mostrou em excesso. Muito útil se mostrou a agulha e os compeed para drenar e sarar as bolhas dos mochileiros. Nessa escalada, se extraviou dois cuecões de poliamida, o que é de somenos, qual a lesão no joelho, frente aos benefícios existenciais conquistados. Mas, fica o registro, como alerta, para os aventureiros. Custo da aventura? Se você, que me lê, não mora em Boa Vista, como eu; se já tem tralha, como eu tinha; e, se pretende utilizar carregador para levar sua mochila principal, como eu fiz, reserve cerca de R$ 3,5 mil. Se for econômico, capaz de voltar com alguma sobra!
Apêndice:

Meu comentário ao post do Mesquita em seu mural no facebook, compartilhado em meu mural, que bombou na grande rede:

Grande escalada de superação cardiovascular e aproximação espiritual. Joelhos estourados de somenos. Obrigado caro Mesquita pela parceria e companhia. Lugar especialíssimo do planeta Terra. Luz!

Meu comentário em meu post no meu mural do facebook:

Caríssimos amigos facebookianos. Passada a emoção, superada a lesão no joelho esquerdo, já no convívio familiar e de retorno ao trabalho, socializo algumas imagens da aventura de escalar o monte Roraima. Experiência espetacular e indescritível! Para além de descobrir que esta forma ordinária está com boa saúde física e mental (não deu um espirro, mesmo lavando as partes em águas super mega hiper geladas; não sentiu uma dor de barriga, mesmo comendo comidas preparadas fora das condições urbanas; não teve nenhuma alergia, mesmo em contato explícito com a natureza; não teve nenhum pânico em relação ao desafio e às condições socioambientais e ainda superou o medo da doença - lesões nas coronárias - e até mesmo o medo da morte, consciente da impermanência dos nomes e das formas), ainda teve oportunidade de fazer aproximações espirituais, aprendendo e expandindo o autoconhecimento. Shakti foi extremamente generosa oferecendo dias ensolarados e mantendo afastadas do grupo as aranhas, os escorpiões e as cobras, sem falar da proteção contra as fraturas expostas e acidentes mais sérios, possíveis nesse ambiente de risco de acesso a um local dos mais antigos deste planeta Terra. Todos podem realizar essa aventura; basta se preparar física e mentalmente e estar com boa saúde. Vale a pena! Luz!

Cronograma da aventura:

21.1.2016
Viagem para Manaus/Boa Vista
22.1.2016
Viagem Boa Vista/Santa Elena, na Venezuela
23.1.2016
Viagem para a comunidade nativa. Caminhada até o primeiro acampamento no rio Pedra
24.1.2016
Caminhada até o acampamento base.
25.1.2016
Subida ao topo do monte Roraima. Caminhada até as “jacuzzis”, para tomar banho. Caminhada até o hotel de estrelas infinitas
26.1.2016
Caminhada até o ponto geográfico da fronteira tríplice, passando pelo Vale dos Cristais, onde tomamos banho, e almoçando no Poço
27.1.2016
Descanso e recuperação em função da lesão do joelho esquerdo. Parte do grupo foi a um mirante chamado “A Janela”
28.1.2016
Descida até o primeiro acampamento no rio Kukenan
29.1.2016
Caminhada final até a comunidade nativa. Viagem para Boa Vista
30.1.2016
Viagem Boa Vista/Manaus


Nota Final: Dia 31.1.2016, como dito acima, esta forma ordinária fez 57 anos!