sábado, 19 de novembro de 2016

DE UM DESAFIO HISTÓRICO

Da criação de firmas[1]

Contexto introdutório

A ideia é contraditar de forma complementar a perspectiva da atração de investimentos. Nessa dimensão, entende-se que o desenvolvimento se dá de forma equilibrada com essas duas funções, a consubstanciar a indústria de transformação: atração + criação; criação + atração, consolidando as estruturas industriais. O foco, portanto, é o processo de industrialização de Manaus, extensivo a todo local do chão amazônico.
O PIM tem cerca de 600 (seiscentas) empresas incentivadas, cujo produto é maior do que muitos PIB de pequenos países. Em geral, é reconhecido pelas marcas internacionais que se estabelecem por forças das vantagens comparativas, aqui entendidas vantagens competitivas estáticas, oferecidas pelo Projeto ZFM. Trata-se de um mecanismo já bem fortalecido que opera a quase 50 (cinquenta) anos e com sobrevida até 2074, quando chegará ao final do seu atual prazo de vigência constitucional.
Apesar dessa potência industrial, Manaus não foi capaz de criar firmas que pudessem competir e concorrer em nível de faturamento e geração de trabalho e de renda, para reduzir a dependência do seu processo de industrialização ao capital e tecnologia atraída. Muitos podem ter sido os motivos, que podem estar explícitos ou implícitos na forma política com que seu capital social teve ou não teve competência estratégica de reconfigurar a natureza do produto gerado pelo PIM, em particular frente à pujança e independência de suas marcas tecnológicas e liderança empresarial.
Não importa a desculpa ou a justificativa. Importa mais observar e testemunhar que Manaus deixa de adotar a ZFM, na vertente industrial, como plataforma de criação de uma estrutura empresarial local, com estratégia própria, atuando de forma global.
Então, o objetivo desta reflexão − Da criação de firmas − é rivalizar em termos de políticas públicas com o marco regulatório da ZFM, visando construir um segundo pilar, um segundo vetor que complemente o processo de industrialização manauara. E, para tanto, é necessário destacar a dimensão patrimonial em duas grandes ambiências: a endógena e a exógena, pois diferentes são os mecanismos e ferramentas de política industrial e tecnológica que se deve implantar para consolidar firmas, tanto atraídas, quanto especialmente criadas.

Do tratamento endógeno

A despeito da ausência de cultura capitalista tupiniquim, ainda que haja muitos investimentos com tecnologia universal acontecendo, e mesmo de ponta como os que decorrem do laboratório de TI da Ufam, que adote a busca do progresso técnico como evolução de sua plataforma industrial, mecanismos e ferramentas de política industrial e tecnológica podem e devem ser desenhados, implantadas, avaliadas, reformuladas e mantidas de tal sorte que Manaus consolide e potencialize o processo de industrialização que a ZFM oferece. A tática e o segredo para o desenho da estratégia é perceber e entender que o progresso técnico, via indústria de transformação, parte do equilíbrio entre oferta e demanda tecnológica. No equilíbrio, estão postas as condições favoráveis para a configuração de uma ambiência onde impere o empreendedorismo, a inovação e o crédito. Esses três vetores, claro, promovidos e incentivados perenemente, enquanto perdurar a lógica capitalista da acumulação de lucros e apropriação de conhecimento.
O primeiro pincel para o desenho de uma política industrial e tecnológica de longo prazo é levantar e manter um amplo diagnóstico das firmas com capital e tecnologia local em todos os setores possíveis da economia, especialmente ativos os setores que convirjam para a bioeconomia, notadamente a biotecnologia. Esse diagnóstico seria tanto quantitativo quanto qualitativo. Ou seja, além do número, o levantamento registraria competências e habilidades, carências e necessidades de cada seguimento em termos industriais e tecnológicos. Esse levantamento não seria trivial, mas certamente fundamental para ao todo o resto.
O segundo pincel é caracterizar cada setor frente à oferta tecnológica disponível e à demanda diagnosticada. Em geral, acredita-se que, pela inexistência de tradição industrial, combinada com a sina histórica da atração de investimentos, e considerando os laboratórios e centros de P+D existentes, deverá prevalecer na maioria dos setores maior oferta do que demanda tecnológica. Mas não será difícil identificar algum setor que, embora estabelecido, esteja travado em termos de melhorias e inovações, incrementais e transformadoras.
A oferta tecnológica maior do que a demanda correlata pode estar moldada pelas dezenas, dezenas de centenas, talvez milhares de dissertações e teses, de investigações lavadas a termo por grupos de pesquisa dos laboratórios e centros de P+D locais cujo destino final não é o mercado, mas as prateleiras das bibliotecas das faculdades e institutos de tecnologia. Já o inverso pode ser sinal da própria falta de empreendedorismo inovador, que impulsione e potencialize produtos e mercados dinâmicos. Admite-se que muitas idealizações tenham até mesmo sido testadas em laboratórios, desde seus protótipos. É essa deficiência, de transformar conhecimento em negócios, que deve ser superada como base fundamental do processo de criação de firmas. Esse processo não é de curto ou médio prazo. Nem mesmo de longo prazo. Mas sim de longuíssimo prazo, que se estabelecerá secularmente enquanto cultura em decorrência de uma política de Estado, instituto que alberga o capital, em sinergia com a adaptação do DNA social do chão amazônico ao risco associado ao progresso técnico aplicável à indústria de transformação.
O terceiro pincel seria o dimensionamento de um conjunto de planos de negócios que oportunizassem a retirada das dissertações, teses e investigações das prateleiras, visando a lançar produtos com base em insumos e saberes da floresta – aqui entendidos como amazonidades – no mercado. Esse processo seria continuadamente mantido e alavancado e avaliado até que se tornasse culturalmente forte e predominante, como dito acima. Crédito disponível permeando todos os locais do chão amazônico seria a fonte permanente para seus lançamentos no mercado, nutridos de forma também permanente pela busca de melhorias e inovações incrementais. Poder-se-ia idealizar um programa robusto de geração de start up’s!
Já o quarto pincel constituiria na aplicação de mecanismos e ferramentas práticas, no sentido temporal, isto é, temporários e renováveis, como a adoção do poder de compra combinado com a proteção de mercado com barreiras fiscais estabelecidas pelo Estado. Outros mecanismos e outras ferramentas deverão ser aplicadas conforme necessidade e carência especificas de cada setor da economia, onde se incluem os incentivos fiscais. Mas deverá haver uma dinâmica industrial e tecnológica permanente que sobreviva às cores partidárias dos vários governos que se sucedem, vertida e convergente com o desafio histórico de se construir uma cultura empresarial com cunho e estratégia própria. Verdadeiramente um capitalismo amazônico![2]

Do tratamento exógeno

Aqui as condições objetivas, industrial e tecnologicamente falando, se invertem completamente. É importante, nesse sentido, o capital social de Manaus ter consciência de que a simetria e conformidade entre o chão de fábrica, associado aos pacotes tecnológicos atraídos com os investimentos produtivos, tem muito pouco ou mesmo nenhuma conexão e integração com os laboratórios e centros de pesquisa locais. Essa limitação constitui um grande obstáculo à agregação de valor via melhorias e inovações de processo e, especialmente, de produto. Constitui, portanto, uma demanda tecnológica elevada frente à frágil oferta tecnológica.
Também aqui pouco importa as justificativas atribuídas à essa limitação, todavia, fundamentalmente computada à natureza intrínseca e contradições internas do Projeto ZFM, notadamente quanto à exigência essencial para o gozo dos incentivos fiscais ­ vantagens competitivas estáticas ­, que é o cumprimento do PPB. Ou seja, o simples ajustamento do projeto industrial e tecnológico às condições mínimas de fabricação permite a operação de plantas industriais ao longo do tempo que conferem saltos e inovações incrementais e transformadoras sem que haja qualquer esforço local de P+D. Exemplos: passagem tecnológica da TV em preto & branco para colorida; substituição do tubo catódico para a tecnologia de plasma e correlatas; incorporação das transformações tecnológicas em aparelhos de telefonia móvel; etc. etc.
Entende-se que essa condicionalidade dependente pode ser alterada com uma postura arrojada do empresariado local junto com a elite governamental via políticas públicas convergentes à busca do desenvolvimento industrial e tecnológico autossustentado. A ideia é passar a sugerir, oferecer, ou mesmo exigir minimamente numa proporção de 1:3, que na aprovação de projetos industriais, parcerias estratégicas sejam formadas em termos de joint-ventures. Em paralelo, que haja um plano ousado de compra e aquisição, fusões e/ou incorporações de plantas industriais por parte do empresariado local com financiamento oficial em formatação adaptada ao processo de melhorias e inovação. Sem descuidar das possibilidades da criação de um programa de promoção de spin off’s que seja desafiador e multiplicador!
Nesse amplo programa de consolidação da estrutura estratégica da dimensão patrimonial local-nacional, e mesmo estrangeira, junto à tendência tecnológica high tech, deve-se explorar as técnicas utilizadas por economias que se aproximaram da fronteira tecnológica via processos de atração de investimentos combinada com a transferência de tecnologia que são: a engenharia reversa e a engenharia reversa ampliada. Em paralelo, claro, um robusto programa de formação de capital humano técnico e especializado nas engenharias e disciplinas afins, que consubstanciariam o capital intelectual das firmas privadas, organizações públicas e laboratórios e centros de pesquisa em prol da condição autossustentada junto ao desafio de construção de um capitalismo amazônico lastreado por amazonidades, bem como da consolidação, de forma enraizada, das firmas atraídas e incentivadas.

De linhas de ações

A Suframa, responsável pela administração do Projeto ZFM, tem idealizado estratégias e táticas que visam a não só a atração e consolidação de investimentos, mas inclusive a criação de negócios locais ­ e mesmo regionais. Sob a batuta da égide sustentável, adicionou à sua missão o apoio necessário à educação, à ciência, à tecnologia e à inovação, de tal sorte a tornar a economia de Manaus e do chão amazônico competitiva. Não obstante, ao não distinguir claramente, ainda que esteja colocado subliminarmente, mecanismos e ferramentas de políticas industrial e tecnológica que visam alvos distintos sob a ótica da dimensão patrimonial, peca, ao nosso ver, por não destacar e sublinhar necessidades e carências diferenciadas desde a perspectiva da oferta e da demanda tecnológica.
Essa postura, contudo, implicaria em enfrentar com clareza e visibilidade o desafio histórico de consolidar o processo de industrialização de Manaus e arredores, forjando uma estrutura empresarial com estratégia própria. Admite-se que esse entendimento seja politicamente incorreto e inadequado, até porque o discurso e, sobretudo, a prática são construídos sob a estreita vigilância de interesses explícitos pela manutenção do status quo. Vale dizer, pela irredutibilidade da permanência perene das vantagens comparativas ou competitivas estáticas a beneficiar e a priorizar a lógica da atração de investimentos. Por pressuposto, a conquista de uma ambiência que libere e nutra vantagens competitivas dinâmicas aponta para a adoção de incentivos fiscais de forma temporária e localizada.
Ainda assim, poderíamos realçar algumas linhas de ações que convergem para a construção de um capitalismo amazônico contidas nas linhas estratégicas tecnologia e inovação, capital intelectual e empreendedorismo e desenvolvimento produtivo, admitindo o diagnóstico de competências e habilidades, carências e necessidades de cada setor nas mãos do capital social de Manaus:
        1.       Apoio à realização sistemática de plataformas tecnológicas;
Essa tática é considerada de extrema importância para a busca do equilíbrio entre oferta e demanda tecnológica. E teria aplicabilidade tanto para a comunidade endógena quanto para a exógena. Trata-se de um mecanismo que visa o desenho de projetos de P+D assinados, chancelados e financiados pela tríade governo-academia-indústria;
        2.       Incentivo ao empreendedorismo científico-tecnológico;
Não se tem como construir um capitalismo amazônico sem a promoção contínua e especializada do empreendedorismo.
        3.       Articulação para a integração entre a academia e empresa, visando a inovação via criação ou aprimoramento de produtos e processos;
Tática aplicável tanto para a alavancagem de start up’s quanto de spin off’s, sem falar nas possibilidades para implementar melhorias e inovações no chão de fábrica incentivado, empresas incubadas e firmais locais.
        4.       Apoio à manutenção e ampliação dos sistemas local e regional de incubadoras;
Seria fundamental agregar à essa tática, novos conceitos como aceleração de negócios.
        5.       Incentivo e estímulo às empresas de base tecnológica;
Há uma conexão lógica entre o empreendedorismo inovador, aceleração de negócios e incubação de empresas com essa tática no sentido de suas emancipações no mercado;
        6.       Estímulo ou apoio à oferta de cursos de empreendedorismo a partir de instituições de ensino ou em parceria com outras entidades públicas ou privadas;
A ideia é oportunizar a todo graduando a elaboração de um plano de negócios para viabilizar economicamente um produto desenvolvido nos laboratórios e centros de pesquisa locais.
        7.       Apoio à oferta de suporte técnico para a geração de planos de negócios e disseminação de práticas de gestão e de capacitação de recursos humanos;
Essa tática se associa com todas as linhas de ações vertidas ao empreendedorismo. Idealmente, toda graduação deveria exigir um Plano de Negócios, além de uma Monografia, para colocação de grau.
        8.       Apoio a disseminação de redes de conhecimento e aprendizado;
Um dos pressupostos básicos de consolidação de um sistema local de inovação é a sinergia positiva entre confiança, cooperação e aprendizado dos agentes econômicos.
        9.       Apoio a iniciativas que visem o desenvolvimento sustentável para o aproveitamento de potencialidades regionais e oportunidades de negócios ­ na forma de amazonidades ­, inclusive ALC’s, Distrito Agropecuário da Suframa e Arranjos Produtivos Locais;
Essa tática visa incrementar, no sentido de tornar real, o marco regulatório de incentivo à industrialização no chão amazônico da década de setenta do século passado, que foi recentemente reformado complementarmente num outro regramento aplicável tão somente às ALC’s. Converge positivamente para a ação emergencial denominada “Potencializar o processo de industrialização das ALC’s com base em insumos regionais na lógica do desenvolvimento sustentável”. 
        10.   Articulação com os setores público e privado para a captação de recursos financeiros para o setor produtivo da área de jurisdição da Suframa;
Essa tática tem convergência com o vetor crédito da trilogia virtuosa do capitalismo, junto com o empreendedorismo e a inovação. Estabelece forte vínculo, ainda, com a ação emergencial intitulada “Estudar a viabilidade de constituição de um Fundo de Investimentos, a partir da TSA, visando a consolidar a competência institucional de agência de desenvolvimento”.
A fonte dessas linhas de ações, dessas táticas é o Plano Estratégico da Suframa aprovado pelo CAS em 2010. As três áreas estratégicas aqui selecionadas para priorizar a construção de um capitalismo amazônico oferecem 37 linhas de ações, portanto, fizemos uma seleção representando 27%. Ao todo, o Plano Estratégica alinha 84 táticas, distribuídas nas oito áreas estratégicas (desenvolvimento organizacional, 10; gestão de incentivos fiscais, 7; logística, 10; tecnologia e inovação, 14; atração de investimentos, 9; inserção internacional, 11; capital intelectual e empreendedorismo, 9; e, desenvolvimento produtivo, 14). É muita ousadia! O seu conjunto representa um verdadeiro desafio histórico!

Considerações Finais

Nem se a Suframa fosse política e financeiramente forte, como nos velhos tempos, conseguiria executar sozinha as 10 linhas de ações selecionadas, muito menos a sua totalidade alinhada junto às áreas estratégicas. Parcerias institucionais e acordos financeiros seriam necessários para implementar minimamente as táticas, em termos de metas, prazos e cronogramas, que vertem, na nossa opinião, para a trilogia virtuosa do capitalismo: empreendedorismo, crédito e inovação. Aplicável às amazonidades, por certo e claro. E, sobretudo, vontade política e empreendedorismo institucional. Sem falar que outras visões estratégicas devem ser acionadas e complementadas, coordenadas e sistematizadas pela interação governo-academia-indústria. Tudo amalgamado por um "Sistema de inteligência competitiva sistêmica", entendido no Plano Estratégico da Suframa como um fator crítico de sucesso.
A década 2003-2012 proporcionou a emergência do Sistema Manaus de Inovação. Desde então, iniciativas e feitos para alavancar o empreendedorismo tem sido itens constante da agenda política. O crédito precisa entrar definitivamente na lógica do risco associado ao sistema capitalista e vertido ao progresso técnico. A superação da dependência aos investimentos produtivos e pacotes tecnológicos exógenos não poderá ser conquistada em uma década, mas talvez seja possível em um século, caso esforços sejam encetados e empreendidos desde aqui e agora. Superar não significa negar, mas ir além.
Insta registrar que apesar de se transitar por mecanismos e ferramentas de política industrial e tecnológica visando a consolidação de firmas existentes e instaladas, tanto de capital local quanto estrangeiro, a prioridade é pela criação de novas firmas, privilegiando o título da reflexão. Tudo na vida é opção e decisão. Que haja um capitalismo amazônico num futuro desejado, que proporcione melhor liberdade política e maior independência econômica no chão amazônico! Entende-se, nesse contexto, que a atração de investimentos representa uma política pública consolidada.




[1] Da lavra de Antônio José Botelho, enquanto “Carta aberta” aos Engenheiros da Turma de 1978 da Ufam.
[2] Termo hiperbólico, entendido como uma categoria de análise, criado pelo autor para acomodar outros conceitos, quais: growing up e economia de enclave industrial, que participam de outras reflexões e que objetivam motivar e desafiar o capital social de Manaus a superar a dependência do Projeto ZFM. A ideia da construção de um capitalismo amazônico é o cerne do Pequeno Ensaio em prol de um Capitalismo Amazônico a partir de Manaus, publicado em 2011 pela Editora Caminha em Manaus e em 2012 pelo sistema iTunes na rede mundial de computadores.