Pessimismo otimista: uma homenagem a Schopenhauer[1]
Numa citação do professor Roberto Martins no livro do professor
Carlos Alberto Tinôco [As Upanishads do Yoga] contida no longo artigo em que
protesta sobre a posição de Hegel frente a filosofia oriental [hindu + budista
+ jainismo + etc] observei a adoção de Schopenhauer tradicionalmente
entendido como o filósofo do pessimismo no contexto daquela defesa.
Vejam o que ele diz, à p. 211: "Podemos citar como contraexemplo
um célebre filósofo contemporâneo de Hegel: Schopenhauer. A opinião desse
filósofo sobre o pensamento da Índia era a mais alta possível. Referindo-se a
um texto filosófico indiano, Schopenhauer chega a afirmar que "...a Upanishad
é o fruto da mais elevada sabedoria humana". Não se trata de um mero
deslize da pena de Schopenhauer. Pode-se afirmar com segurança que sua obra
fundamental, O Mundo como Vontade e Representação, foi baseada na leitura de um
conjunto de textos indianos: 50 Upanishads traduzidas por Anquetil Duperron. No
prefácio da primeira edição do seu livro, Schopenhauer afirma poder ter a
pretensão de afirmar que sua obra contém todas as idéias expostas naquele
conjunto de Upanishads. Não se trata também de um entusiasmo de juventude, que
poderia ser depois abandonado. Mesmo em obras posteriores, Schopenhauer mantém
sua opinião sobre o valor da filosofia indiana".
Então, para conferir a título de estudo, fui buscar algum
texto de Schopenhauer e encontrei um capítulo intitulado "o olhar
maligno" dedicado a ele por Wilhelm Weischedel em seu livro A Escada
dos Fundos da Filosofia: a vida cotidiana e o pensamento de 34 grandes
filósofos, publicado pela Editora Angra, em segunda edição, em 2000.
Wilhelm Weischedel doutorou-se em filosofia sob a orientação de Heidegger [um
dos 34 filósofos abordados no livro em tela] depois de estudar teologia evangélica,
filosofia e história. Sua principal contribuição foi a organização das obras
completas de Kant [outro dos 34].
Mas vejam o que ele registra às páginas 249-256 sobre a
obra de Schopenhauer, cuja principal publicação [obra prima como dito
acima] foi O Mundo como Vontade e Representação.
"O desprezo de Schopenhauer pelo homem provém de um
profundo e abrangente pessimismo, característico para ele, que perpassa todo
seu pensamento ...
O pessimismo de Schopenhauer refere-se, em especial, à
existência humana. Essa é sobrecarregada por uma série de necessidades que,
porém, jamais podem ser satisfeitas. Permanentemente, essas necessidades
produzem, elas mesmas, novas cobiças que, por sua vez, não podem ser aplacadas ...
se as satisfações de seus desejos nunca se realizam, o homem acaba por se
fartar desse jogo insensato. Inevitavelmente, então, sucumbe ao tédio que,
possivelmente, é ainda mais maçante. De ambos, desejos insatisfeitos e tédio,
suscita inelutavelmente o sofrimento, que constitui a característica marcante
da vida humana ...[2]
Assim considera, a vida do homem é, a um só tempo, comédia
e tragédia ...
Acresce que os homens, reciprocamente, também tornam a vida
um sofrimento ... "os selvagens devoram-se uns aos outros, os mansos
enganam-se uns aos outros: a isso se denomina o curso do mundo"...
resumindo, a vida é "miserável e, de modo algum, digna de se
desejar!"...
Porém, a miséria não rege apenas a vida humana. Todo
vivente está submetido ao sofrimento. a natureza inteira é uma luta impiedosa
pela existência ... toda a realidade é caracterizada pela "dor infinita
que decorre essencialmente da vida, da qual o mundo está saturado" ...
A visão pessimista da realidade é, para Schopenhauer, o
ponto de partida também para seu pensamento filosófico. Todavia, isso precisa
ser investigado mais profundamente, pois a fundamentação que ele dá ao
sofrimento do mundo o conduz a reflexões filosóficas e metafísicas
fundamentais...
A obra-prima de Schopenhauer ... começa com a frase:
"o mundo é minha representação". Com isso não indica apenas o simples
fato de que os homens representam mentalmente as coisas. Schopenhauer quer
dizer muito mais: toda a realidade existe, a princípio, enquanto meramente
representada pelo homem. O que é dado a este modo imediato é a forma como as
coisas talvez pudessem ser em si mesmas; imediatamente dadas são apenas as
representações das coisas ... Schopenhauer afirma que o homem "não conhece
sol algum e terra alguma, mas apenas um olho, que vê o sol, e uma mão, que toca
a terra". Expressa de outro modo, todas as coisas são apenas aparições ou
fenômenos ... ele ... recusa espaço, tempo e causalidade dos objetos e os
atribui ao espírito humano ... temporal, espacial, causado e causador é o olhar
que o homem lança sobre as coisas. Ele traz tempo, espaço e causalidade
originariamente em si, a fim de, por assim dizer, os projetar fora do mundo. Essa
tese do caráter fenomênico do mundo, como será mostrado a seguir, é
significativo para o problema do pessimismo de Schopenhauer [3].
Se isso fosse tudo o que Schopenhauer tivesse a dizer sobre
a realidade, então se permaneceria em um puro e simples idealismo ... mas ao
refletir mais exatamente sobre o conceito de aparição ou fenômeno, torna-se
claro a Schopenhauer que, atrás da aparição, tem de haver algo que apareça ... Schopenhauer
vai adiante [de ter encontrado apenas uma altamente indeterminada "coisa
em si", um mero "x" sobre o qual não se pode afirmar nada]. Ousa
uma afirmação sobre a essência daquela coisa em si [4].
Com essa intenção, Schopenhauer toma um desvio. Antes de
tudo, investiga a forma pela qual o homem se sabe como ser corpóreo. O homem
conhece seu corpo de uma dupla maneira. Por um lado, este é uma coisa entre
outras, um objeto observável da representação. Por outro, contudo, há ainda uma
perspectiva interna, pela qual o corpo é imediatamente sentido ... chega à tese
[a partir da segunda percepção] segundo a qual o corpo humano, considerado em
sua essência, consistiria em vontade objetivada, vista enquanto objeto. O corpo
aparece como coisa material, mas, conforme seu ser-em-si, é vontade [pois, o
corpo aparece como expressão da vontade objetiva do homem] ...
A dupla visão do corpo humano serve a Schopenhauer como
chave para a elucidação da essência de toda a realidade. Também aqui há uma
esfera do ser-em-si, em que as coisas devem ser entendidas enquanto realização
de uma vontade nelas dominante. Isso porque a vontade é a força que
"também atua e vegeta nas plantas;...; que se manifesta nas afinidades
eletivas dos materiais como repulsão e atração, decomposição e composição; que,
enfim, como gravidade, atua tão poderosamente em toda a matéria, a ponto de
atrair a pedra para a terra e a terra para o sol". Assim, fazendo uma analogia
sem dúvida problemática com o querer humano, Schopenhauer sente-se no direito
de dizer que o mundo, considerado segundo seu ser-em-si e sua essência
interior, é vontade: existe enquanto vontade que se manifesta [5].
Essa vontade é, pois, entendida por Schopenhauer como força
originária homogênea que, em sua autorrealização, se cinde nas muitas vontades.
Por isso, a vontade originária não pode ter, desde o início, a forma da vontade
consciente, como se apresenta no homem. [negrito meu] ... assim, Schopenhauer
pode dizer: "minha filosofia inteira pode resumir-se em uma expressão: o
mundo é o autoconhecimento da vontade".
...
Com a vontade originária, que cria a si mesma[6],
Schopenhauer encontra um princípio metafísico para a explicação unitária
de toda a realidade ... esse princípio diferencia-se, todavia, dos princípios
semelhantes da tradição e da filosofia do tempo de Schopenhauer. Ele é imanente
ao mundo e, por isso, não constitui uma origem divina, supramundana [7]...
[negrito meu]
Schopenhauer considera necessário estabelecer tal princípio
fundamental metafísico. O homem não pode vagar simplesmente por entre as coisas
sem uma compreensão mais profunda. Isso porque é o animal metaphysicum,
o ser vivo dotado de uma necessidade metafísica, tal como ela vem à expressão,
primeiramente de forma provisória, nas religiões e tal como, depois, atinge o
ápice na filosofia...[itálico autor]..."sem dúvida, é o saber em torno da
morte e, ao lado disso, a concentração do sofrimento e da privação da vida que
dão impulso mais forte para a reflexão filosófica para a interpretação
metafísica do mundo" [8].
Assim, levanta-se agora a questão de como o homem
pode se libertar desse sofrimento incessante. Isso se torna possível, em um
primeiro nível, quando em seu pensamento se libera da aflição da vontade e
da destinação por meio desta e se eleva do conhecimento do singular para a pura
visão do mundo e das coisas. Em um segundo nível, ultrapassa sua
individualidade limitada e cheia de sofrimento e seu modo particular de
conhecimento. A seguir, chega a uma forma desinteressada de consideração.
Depois, ingressa no estado da pura contemplação. Enfim, torna-se um
"claro e eterno olho do mundo". [negritos meus]
O que o homem vê nesse último nível não são mais as
figurações transitórias da vontade[9],
mas as coisas em sua pura essência[10]....
elas são as eternas e essenciais formas originárias da realidade. Elevadas da
transitoriedade[11]:...o
arquétipo do homem ... a vontade originária [visão metafísica] se
realiza, a princípio, no reino das idéias, para somente depois, se realizar na
realidade visível. [negritos meus; entre colchetes meu]
...
... é necessário procurar outros caminhos [depois de
defender a arte como possibilidade de criação e contemplação], ao longo dos
quais seja possível libertar-se definitivamente da vontade e de seus distúrbios.[12]
Ora, isso só vem a ser possível por meio da negação radical
da vontade[13],
que só cria sofrimento. Aqui surge, todavia, uma dificuldade. O que provém da
vontade originária, acontece necessariamente tal como acontece.[14]
Como pode, então, o homem, que descende ele mesmo da vontade originária,
voltar-se em liberdade contra a vontade? Schopenhauer soluciona a questão por
meio de um ato de violência. Simplesmente afirma que o homem é, de fato,
aprisionado por uma patente necessidade, mas em um ponto ele é livre: na
possibilidade de, negando a si mesmo, voltar-se contra a vontade que tudo
determina.[15]
Schopenhauer fundamenta esse pensamento em fatos éticos: a
responsabilidade ... esses fatos éticos pressupõem, evidentemente, a liberdade.
Mas onde esta tem sua sede? Decerto, não no fazer e no agir, pois eles são, sem
exceção, determinados de modo causal. Portanto, a liberdade tem de residir no
respectivo modo de ser individual do homem. Se este se responsabiliza pelos
seus atos, não o faz por ter feito isso ou aquilo, mas sim porque ele é desse
modo, é que tem que fazer isto ou aquilo[16]
Assim, Schopenhauer é novamente conduzido ao âmbito da especulação metafísica ...
o pensamento de Schopenhauer é, portanto, que, antes de seu nascimento, o homem
se teria decidido livremente por um determinado caráter, em conformidade com o
qual, então, age em sua vida e pelo qual é chamado a prestar contas.[17]
Assim, Schopenhauer pode dizer: em sua existência empírica, de fato, o homem é
ilivre, mas, na raiz de sua existência é livre. Justamente disso é que decorre
a possibilidade de negar a vontade.[18]
Mas como se cumpre essa negação da vontade? ... a via
teórica começa com a constatação de que o fundamento de toda a realidade domina
a vontade originária que, por causa de sua dilaceração, provoca o sofrimento do
mundo. Se o homem entende [ou aceita] isso, também compreenderá que o curso
pleno de sofrimento do mundo é apenas uma aparição da verdadeira realidade, a
vontade originária, mas não é ele mesmo real[19]
Assim, esse curso cessa de afligi-lo. A seguir, no pensamento, o homem deixa a
realidade dolorosa. Aí, no lugar da preocupação e do desespero, surge na alma
uma singular serenidade: renúncia e falta de vontade, que recusa
tudo que o coração almeja.[20]
O efeito dessa é a ascese, em cujo fim se encontra a plena paz interior,
em que a vontade foi totalmente extinta: "é a bonança da mente".
Mas isso não é tudo. Em um segundo nível [via prática], a
negação da vontade se dá por meio do fazer. Consiste em que se alivie o
sofrimento do outro por meio da compaixão. Também isso é fundamentado
metafisicamente por Schopenhauer. Se todos os seres vivos estão compreendidos
na vontade originária homogênea, têm de ver a si mesmos ligados uns aos outros
pela raiz, e compreender que, no fundo, tudo é um[21]
Com isso, os limites ilusórios da individualidade são rompidos [iluminação
liberação]. O sofrimento do outro é o próprio sofrimento, e justamente dessa
compreensão é que surge a compaixão. Nela, o homem sofre toda a dor da
humanidade ou, mesmo, de todo o vivente. A compaixão pode, assim, tornar-se a
fonte da atitude moral que supera o egoísmo ... esse é o princípio fundamental
da ética de Schopenhauer. De acordo com ela, a vontade, que cria o sofrimento,
é negada por meio do ato da compaixão ...
Nada, de fato, nem a negação teórica da vontade, nem a
prática, é capaz enfim de afastar o insistente pessimismo do qual brota todo o
pensamento de Schopenhauer [para ele, portanto sua tese permanece mera teoria].
Segue achando que seria melhor, se nada fosse que seria "decididamente
preferível o não-ser ao ser". E continua aspirando ao nirvana, à extinção
de tudo que é. ainda pensa que o verdadeiro objetivo do mundo e do homem é o
nada.[22]
Pois "adiante de nós resta apenas o nada". [aspas finais] [todo
negritado; todo entre colchetes meu]
Essa longa síntese-reprodução para dizer que entendo que a
história foi rude com Schopenhauer. Todos dizem: "Tome cuidado Schopenhauer.
O discurso dele é muito pessimista; você acaba deprimido". E não é
verdade!
Continuar.............................[23]
[1] Por Antônio José Botelho.
[2] Aqui percebe-se com clareza a natureza da
Kali Yuga.
[3] Afora ou além do mundo fenomênico não há
tempo e espaço na concepção metafísica das filosofias orientais.
[4] Essa essência pode ser o Absoluto do
Vedas/Vedanta ou a nadidade budista.
[5] Aqui se pode adotar um paralelo com o
conceito de Prakriti ativa e atuante.
[6] Com clareza: Prakriti.
[7] Aqui está sem desencontro com Brahman =
Atman = Purusa; mas de toda sorte não está distante do conceito de nadidade do
nirvana budista; ou da visão Sankhia que não admite a existência de Deus.
[8] É a necessidade imanente de buscar a
liberação.
[9] Princípio da impermanência.
[10] Talvez aqui se possa estabelecer um
paralelo com a iluminação a transcedência ou com a tese de estar
liberto transmigrado.
[11] Aqui se percebe novamente o princípio da
impermanência das coisas.
[12] Aqui se percebe a possibilidade da
técnica da meditação associada à teoria de desapego como alternativas.
[13] Talvez por isso o ascetismo na origem da
filosofia védica.
[14] Com clareza, pode-se estabelecer aqui um
paralelo com o karma a lei de causa e efeito.
[15] Aqui, pode-se ajustar o discurso do
filósofo aos princípios metafísicos de Jiva, isto é, Atman aprisionado ao
samsara; Atman que não nascido + eterno + inefável.
[16] Aqui, o Bhagavad Gita tem capítulo
voltado para essa questão, isto é, da ação e da inação com a ética metafísica
necessária.
[17] Aqui há um conflito com a lei de causa e
efeito, pois o homem não decide livremente, mas é imputado por vidas passadas a
agir de determinada forma - que em tese deve ser superada tanto a forma
positiva, quanto, sobretudo, a negativa.
[18] Aqui, mais uma vez uma convergência com o
princípio do Brahman existente no homem na forma de Jiva aprisionado pelo
samsara que conta com a tendência universal da libertação que ocorrerá mais
cedo ou mais tarde dentro de cada yuga.
[19] Aqui está o conceito de maya da ilusão
que cerca os seres sencientes em samsara.
[20] Renúncia Þ mente quieta = Yoga de Patanjali.
[21] Confesso que quando cheguei à palavra
raiz escrevi ao lado - tudo é um só! - e quando finalizei a frase lá
estava tudo é um. Senti uma emoção confortadora pertinente ao conhecer.
[22] Conceito budista de nadidade.
[23] Primeira versão escrita em 2008.
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