01/10/2025

SOBRE A TESE DE SCHOPENHAUER

 Pessimismo otimista: uma homenagem a Schopenhauer[1]

 

Numa citação do professor Roberto Martins no livro do professor Carlos Alberto Tinôco [As Upanishads do Yoga] contida no longo artigo em que protesta sobre a posição de Hegel frente a filosofia oriental [hindu + budista + jainismo + etc] observei a adoção de Schopenhauer tradicionalmente entendido como o filósofo do pessimismo no contexto daquela defesa.

 

Vejam o que ele diz, à p. 211: "Podemos citar como contraexemplo um célebre filósofo contemporâneo de Hegel: Schopenhauer. A opinião desse filósofo sobre o pensamento da Índia era a mais alta possível. Referindo-se a um texto filosófico indiano, Schopenhauer chega a afirmar que "...a Upanishad é o fruto da mais elevada sabedoria humana". Não se trata de um mero deslize da pena de Schopenhauer. Pode-se afirmar com segurança que sua obra fundamental, O Mundo como Vontade e Representação, foi baseada na leitura de um conjunto de textos indianos: 50 Upanishads traduzidas por Anquetil Duperron. No prefácio da primeira edição do seu livro, Schopenhauer afirma poder ter a pretensão de afirmar que sua obra contém todas as idéias expostas naquele conjunto de Upanishads. Não se trata também de um entusiasmo de juventude, que poderia ser depois abandonado. Mesmo em obras posteriores, Schopenhauer mantém sua opinião sobre o valor da filosofia indiana".

 

Então, para conferir a título de estudo, fui buscar algum texto de Schopenhauer e encontrei um capítulo intitulado "o olhar maligno" dedicado a ele por Wilhelm Weischedel em seu livro A Escada dos Fundos da Filosofia: a vida cotidiana e o pensamento de 34 grandes filósofos, publicado pela Editora Angra, em segunda edição, em 2000.

 

Wilhelm Weischedel doutorou-se em filosofia sob a orientação de Heidegger [um dos 34 filósofos abordados no livro em tela] depois de estudar teologia evangélica, filosofia e história. Sua principal contribuição foi a organização das obras completas de Kant [outro dos 34].

 

Mas vejam o que ele registra às páginas 249-256 sobre a obra de Schopenhauer, cuja principal publicação [obra prima como dito acima] foi O Mundo como Vontade e Representação.

 

"O desprezo de Schopenhauer pelo homem provém de um profundo e abrangente pessimismo, característico para ele, que perpassa todo seu pensamento ...

 

O pessimismo de Schopenhauer refere-se, em especial, à existência humana. Essa é sobrecarregada por uma série de necessidades que, porém, jamais podem ser satisfeitas. Permanentemente, essas necessidades produzem, elas mesmas, novas cobiças que, por sua vez, não podem ser aplacadas ... se as satisfações de seus desejos nunca se realizam, o homem acaba por se fartar desse jogo insensato. Inevitavelmente, então, sucumbe ao tédio que, possivelmente, é ainda mais maçante. De ambos, desejos insatisfeitos e tédio, suscita inelutavelmente o sofrimento, que constitui a característica marcante da vida humana ...[2]

 

Assim considera, a vida do homem é, a um só tempo, comédia e tragédia ...

 

Acresce que os homens, reciprocamente, também tornam a vida um sofrimento ... "os selvagens devoram-se uns aos outros, os mansos enganam-se uns aos outros: a isso se denomina o curso do mundo"... resumindo, a vida é "miserável e, de modo algum, digna de se desejar!"...

 

Porém, a miséria não rege apenas a vida humana. Todo vivente está submetido ao sofrimento. a natureza inteira é uma luta impiedosa pela existência ... toda a realidade é caracterizada pela "dor infinita que decorre essencialmente da vida, da qual o mundo está saturado" ...

 

A visão pessimista da realidade é, para Schopenhauer, o ponto de partida também para seu pensamento filosófico. Todavia, isso precisa ser investigado mais profundamente, pois a fundamentação que ele dá ao sofrimento do mundo o conduz a reflexões filosóficas e metafísicas fundamentais...

 

A obra-prima de Schopenhauer ... começa com a frase: "o mundo é minha representação". Com isso não indica apenas o simples fato de que os homens representam mentalmente as coisas. Schopenhauer quer dizer muito mais: toda a realidade existe, a princípio, enquanto meramente representada pelo homem. O que é dado a este modo imediato é a forma como as coisas talvez pudessem ser em si mesmas; imediatamente dadas são apenas as representações das coisas ... Schopenhauer afirma que o homem "não conhece sol algum e terra alguma, mas apenas um olho, que vê o sol, e uma mão, que toca a terra". Expressa de outro modo, todas as coisas são apenas aparições ou fenômenos ... ele ... recusa espaço, tempo e causalidade dos objetos e os atribui ao espírito humano ... temporal, espacial, causado e causador é o olhar que o homem lança sobre as coisas. Ele traz tempo, espaço e causalidade originariamente em si, a fim de, por assim dizer, os projetar fora do mundo. Essa tese do caráter fenomênico do mundo, como será mostrado a seguir, é significativo para o problema do pessimismo de Schopenhauer [3].

 

Se isso fosse tudo o que Schopenhauer tivesse a dizer sobre a realidade, então se permaneceria em um puro e simples idealismo ... mas ao refletir mais exatamente sobre o conceito de aparição ou fenômeno, torna-se claro a Schopenhauer que, atrás da aparição, tem de haver algo que apareça ... Schopenhauer vai adiante [de ter encontrado apenas uma altamente indeterminada "coisa em si", um mero "x" sobre o qual não se pode afirmar nada]. Ousa uma afirmação sobre a essência daquela coisa em si [4].

 

Com essa intenção, Schopenhauer toma um desvio. Antes de tudo, investiga a forma pela qual o homem se sabe como ser corpóreo. O homem conhece seu corpo de uma dupla maneira. Por um lado, este é uma coisa entre outras, um objeto observável da representação. Por outro, contudo, há ainda uma perspectiva interna, pela qual o corpo é imediatamente sentido ... chega à tese [a partir da segunda percepção] segundo a qual o corpo humano, considerado em sua essência, consistiria em vontade objetivada, vista enquanto objeto. O corpo aparece como coisa material, mas, conforme seu ser-em-si, é vontade [pois, o corpo aparece como expressão da vontade objetiva do homem] ...

 

A dupla visão do corpo humano serve a Schopenhauer como chave para a elucidação da essência de toda a realidade. Também aqui há uma esfera do ser-em-si, em que as coisas devem ser entendidas enquanto realização de uma vontade nelas dominante. Isso porque a vontade é a força que "também atua e vegeta nas plantas;...; que se manifesta nas afinidades eletivas dos materiais como repulsão e atração, decomposição e composição; que, enfim, como gravidade, atua tão poderosamente em toda a matéria, a ponto de atrair a pedra para a terra e a terra para o sol". Assim, fazendo uma analogia sem dúvida problemática com o querer humano, Schopenhauer sente-se no direito de dizer que o mundo, considerado segundo seu ser-em-si e sua essência interior, é vontade: existe enquanto vontade que se manifesta [5].

 

Essa vontade é, pois, entendida por Schopenhauer como força originária homogênea que, em sua autorrealização, se cinde nas muitas vontades. Por isso, a vontade originária não pode ter, desde o início, a forma da vontade consciente, como se apresenta no homem. [negrito meu] ... assim, Schopenhauer pode dizer: "minha filosofia inteira pode resumir-se em uma expressão: o mundo é o autoconhecimento da vontade".

 

...

 

Com a vontade originária, que cria a si mesma[6], Schopenhauer encontra um princípio metafísico para a explicação unitária de toda a realidade ... esse princípio diferencia-se, todavia, dos princípios semelhantes da tradição e da filosofia do tempo de Schopenhauer. Ele é imanente ao mundo e, por isso, não constitui uma origem divina, supramundana [7]... [negrito meu]

 

Schopenhauer considera necessário estabelecer tal princípio fundamental metafísico. O homem não pode vagar simplesmente por entre as coisas sem uma compreensão mais profunda. Isso porque é o animal metaphysicum, o ser vivo dotado de uma necessidade metafísica, tal como ela vem à expressão, primeiramente de forma provisória, nas religiões e tal como, depois, atinge o ápice na filosofia...[itálico autor]..."sem dúvida, é o saber em torno da morte e, ao lado disso, a concentração do sofrimento e da privação da vida que dão impulso mais forte para a reflexão filosófica para a interpretação metafísica do mundo" [8].

 

Assim, levanta-se agora a questão de como o homem pode se libertar desse sofrimento incessante. Isso se torna possível, em um primeiro nível, quando em seu pensamento se libera da aflição da vontade e da destinação por meio desta e se eleva do conhecimento do singular para a pura visão do mundo e das coisas. Em um segundo nível, ultrapassa sua individualidade limitada e cheia de sofrimento e seu modo particular de conhecimento. A seguir, chega a uma forma desinteressada de consideração. Depois, ingressa no estado da pura contemplação. Enfim, torna-se um "claro e eterno olho do mundo". [negritos meus]

 

O que o homem vê nesse último nível não são mais as figurações transitórias da vontade[9], mas as coisas em sua pura essência[10].... elas são as eternas e essenciais formas originárias da realidade. Elevadas da transitoriedade[11]:...o arquétipo do homem ... a vontade originária [visão metafísica] se realiza, a princípio, no reino das idéias, para somente depois, se realizar na realidade visível. [negritos meus; entre colchetes meu]

 

...

 

... é necessário procurar outros caminhos [depois de defender a arte como possibilidade de criação e contemplação], ao longo dos quais seja possível libertar-se definitivamente da vontade e de seus distúrbios.[12]

 

Ora, isso só vem a ser possível por meio da negação radical da vontade[13], que só cria sofrimento. Aqui surge, todavia, uma dificuldade. O que provém da vontade originária, acontece necessariamente tal como acontece.[14] Como pode, então, o homem, que descende ele mesmo da vontade originária, voltar-se em liberdade contra a vontade? Schopenhauer soluciona a questão por meio de um ato de violência. Simplesmente afirma que o homem é, de fato, aprisionado por uma patente necessidade, mas em um ponto ele é livre: na possibilidade de, negando a si mesmo, voltar-se contra a vontade que tudo determina.[15]

 

Schopenhauer fundamenta esse pensamento em fatos éticos: a responsabilidade ... esses fatos éticos pressupõem, evidentemente, a liberdade. Mas onde esta tem sua sede? Decerto, não no fazer e no agir, pois eles são, sem exceção, determinados de modo causal. Portanto, a liberdade tem de residir no respectivo modo de ser individual do homem. Se este se responsabiliza pelos seus atos, não o faz por ter feito isso ou aquilo, mas sim porque ele é desse modo, é que tem que fazer isto ou aquilo[16] Assim, Schopenhauer é novamente conduzido ao âmbito da especulação metafísica ... o pensamento de Schopenhauer é, portanto, que, antes de seu nascimento, o homem se teria decidido livremente por um determinado caráter, em conformidade com o qual, então, age em sua vida e pelo qual é chamado a prestar contas.[17] Assim, Schopenhauer pode dizer: em sua existência empírica, de fato, o homem é ilivre, mas, na raiz de sua existência é livre. Justamente disso é que decorre a possibilidade de negar a vontade.[18]

 

Mas como se cumpre essa negação da vontade? ... a via teórica começa com a constatação de que o fundamento de toda a realidade domina a vontade originária que, por causa de sua dilaceração, provoca o sofrimento do mundo. Se o homem entende [ou aceita] isso, também compreenderá que o curso pleno de sofrimento do mundo é apenas uma aparição da verdadeira realidade, a vontade originária, mas não é ele mesmo real[19] Assim, esse curso cessa de afligi-lo. A seguir, no pensamento, o homem deixa a realidade dolorosa. Aí, no lugar da preocupação e do desespero, surge na alma uma singular serenidade: renúncia e falta de vontade, que recusa tudo que o coração almeja.[20] O efeito dessa é a ascese, em cujo fim se encontra a plena paz interior, em que a vontade foi totalmente extinta: "é a bonança da mente".

 

Mas isso não é tudo. Em um segundo nível [via prática], a negação da vontade se dá por meio do fazer. Consiste em que se alivie o sofrimento do outro por meio da compaixão. Também isso é fundamentado metafisicamente por Schopenhauer. Se todos os seres vivos estão compreendidos na vontade originária homogênea, têm de ver a si mesmos ligados uns aos outros pela raiz, e compreender que, no fundo, tudo é um[21] Com isso, os limites ilusórios da individualidade são rompidos [iluminação liberação]. O sofrimento do outro é o próprio sofrimento, e justamente dessa compreensão é que surge a compaixão. Nela, o homem sofre toda a dor da humanidade ou, mesmo, de todo o vivente. A compaixão pode, assim, tornar-se a fonte da atitude moral que supera o egoísmo ... esse é o princípio fundamental da ética de Schopenhauer. De acordo com ela, a vontade, que cria o sofrimento, é negada por meio do ato da compaixão ...

 

Nada, de fato, nem a negação teórica da vontade, nem a prática, é capaz enfim de afastar o insistente pessimismo do qual brota todo o pensamento de Schopenhauer [para ele, portanto sua tese permanece mera teoria]. Segue achando que seria melhor, se nada fosse que seria "decididamente preferível o não-ser ao ser". E continua aspirando ao nirvana, à extinção de tudo que é. ainda pensa que o verdadeiro objetivo do mundo e do homem é o nada.[22] Pois "adiante de nós resta apenas o nada". [aspas finais] [todo negritado; todo entre colchetes meu]

 

Essa longa síntese-reprodução para dizer que entendo que a história foi rude com Schopenhauer. Todos dizem: "Tome cuidado Schopenhauer. O discurso dele é muito pessimista; você acaba deprimido". E não é verdade!

 

Continuar.............................[23]

 



[1] Por Antônio José Botelho.

[2] Aqui percebe-se com clareza a natureza da Kali Yuga.

[3] Afora ou além do mundo fenomênico não há tempo e espaço na concepção metafísica das filosofias orientais.

[4] Essa essência pode ser o Absoluto do Vedas/Vedanta ou a nadidade budista.

[5] Aqui se pode adotar um paralelo com o conceito de Prakriti ativa e atuante.

[6] Com clareza: Prakriti.

[7] Aqui está sem desencontro com Brahman = Atman = Purusa; mas de toda sorte não está distante do conceito de nadidade do nirvana budista; ou da visão Sankhia que não admite a existência de Deus.

[8] É a necessidade imanente de buscar a liberação.

[9] Princípio da impermanência.

[10] Talvez aqui se possa estabelecer um paralelo com a iluminação a transcedência ou com a tese de estar liberto transmigrado.

[11] Aqui se percebe novamente o princípio da impermanência das coisas.

[12] Aqui se percebe a possibilidade da técnica da meditação associada à teoria de desapego como alternativas.

[13] Talvez por isso o ascetismo na origem da filosofia védica.

[14] Com clareza, pode-se estabelecer aqui um paralelo com o karma a lei de causa e efeito.

[15] Aqui, pode-se ajustar o discurso do filósofo aos princípios metafísicos de Jiva, isto é, Atman aprisionado ao samsara; Atman que não nascido + eterno + inefável.

[16] Aqui, o Bhagavad Gita tem capítulo voltado para essa questão, isto é, da ação e da inação com a ética metafísica necessária.

[17] Aqui há um conflito com a lei de causa e efeito, pois o homem não decide livremente, mas é imputado por vidas passadas a agir de determinada forma - que em tese deve ser superada tanto a forma positiva, quanto, sobretudo, a negativa.

[18] Aqui, mais uma vez uma convergência com o princípio do Brahman existente no homem na forma de Jiva aprisionado pelo samsara que conta com a tendência universal da libertação que ocorrerá mais cedo ou mais tarde dentro de cada yuga.

[19] Aqui está o conceito de maya da ilusão que cerca os seres sencientes em samsara.

[20] Renúncia Þ mente quieta = Yoga de Patanjali.

[21] Confesso que quando cheguei à palavra raiz escrevi ao lado - tudo é um só! - e quando finalizei a frase lá estava tudo é um. Senti uma emoção confortadora pertinente ao conhecer.

[22] Conceito budista de nadidade.

[23] Primeira versão escrita em 2008.