Crônica
de uma aventura ao monte Roraima, por Antônio José Botelho, 56, agora 57.
Durante o
segundo semestre de 2015, programamos, eu e o caríssimo Antônio Mesquita, parceiro
e companheiro da caminhada até Santigo de Compostela, a escalada ao monte
Roraima sob a liderança da Adventures Roraima, firma experiente. Negociamos
preços, organizamos a tralha, treinamos, procuramos entender o trajeto,
conversamos com o mochileiro França, que já realizou a escalada 3 vezes e que
ofereceu um depoimento valiosíssimo, compramos as passagens e apetrechos de
tralha complementares, enfim, dia 21.1.2016 estávamos prontos para a aventura.
Uma aventura, especialmente para mim, como você, que me lê, constatará até o
final desta crônica!
A
ansiedade era tanta, que esqueci o casaco corta vento em casa. Meu problema
existencial não é de depressão, mas a ansiedade, decorrente por estar com o pé
direito no futuro. Aquariano! O Yoga me ajuda a colocar os dois pés no
presente. Mas o aprendizado é de longo prazo, e deve ser cumprido sem apego e
sem aversão. O problema foi resolvido com a ajuda do mochileiro Wagner, que conhecemos
no aeroporto de Boa Vista. Ele, a esposa e a filha de 8 anos retornavam da trilha
a Machu Pichu, desde Cuzco. Manauara que adotou Boa Vista, Wagner foi muito
generoso, levando-me para comprar um casaco alternativo. Em seguida, tomamos
sorvete, papeando com vista para o rio Branco. Depois ainda nos levou para um
rápido passeio pela cidade, nos deixando no shopping Roraima, onde lanchamos.
A
generosidade já havia sido concedida pelo guia Francisco da Adventure Roraima,
que ao fazer nosso traslado, levou-me para sacar dinheiro no autoatendimento do
Banco do Brasil, para o pagamento final da aventura in cash. Francisco viria a ser muito presente e importante no
momento em que lesionei o joelho esquerdo, conforme ratificarei adiante. De
plano, registro a competência da Adventure quanto à organização e logística. O
sistema de coleta e de destinação adequadas de resíduos sólidos é bastante
responsável, compatível com a ética sustentável, que deveria ser observada e
seguida por todos os programas de acesso ao monte Roraima.
Ficamos
hospedados no Hotel Aipana, dentro do Programa 3 Nações, onde no dia 22.1.2016
haveria o briefing com o Magno, proprietário da Adventure Roraima. À noite,
antes de dormir, o caríssimo Mesquita sugeriu, por recomendação de sua esposa
Selma, que pedíssemos permissão, licença, autorização do Universo para
realizarmos a escalada sob a proteção dos guias espirituais, especialmente
quanto ao ataque de animais (aranhas; cobras; escorpiões), quanto a acidentes e
chuvas. Assim o fiz! Cristina, minha esposa, quando disse que havia esquecido o
casaco corta vento, que serve também para chuva, assegurou: “Não vai chover! ”.
Dito e feito: só garoou no primeiro dia, já no topo. Todos torciam pelo sucesso
da aventura; a ricafilha Carolina me disse, quando retornei, que rezou muito.
Iza, professora de Yoga, antes de partirmos invocou ao Grande Espírito, para que
nos acompanhasse. A ricaneta Maria Clara, na noite anterior, me presentou um
canivete da melhor qualidade, que representa uma ferramenta de proteção profana.
A proteção espiritual é importante, ainda que Ele esteja sempre presente, em todos
os tempos e em todos os lugares, permeando tudo e todos desde além do
tempo-espaço. E foi importante para irmos e voltarmos em paz, conforme expressa
esta crônica.
Segundo Dia
Acordei
cedo para tomar café, fazendo algumas séries de Saudação ao Sol. Tomei banho,
fui tomar café. Em seguida, fui passear no hotel, ficando alguns minutos na
piscina, observando os passarinhos. Gayatri mantra continuava em minha mente,
assim como foi na maior parte do tempo das caminhadas e subida/descida que
envolveu a aventura de escalar o monte Roraima.
Após fazer
companhia ao Mesquita durante o seu café, fomos para o briefing, que levou
cerca de 2 horas com as explanações, explicações e exigências do líder Magno,
para que a escalada fosse realizada com prudência e em segurança. Suas
orientações, após todos do grupo terem se apresentado, inclusive, relatando
suas experiências em trilhas e expondo suas expectativas quanto ao escalar o
monte Roraima, foram bastante reforçadas quanto aos pés, atenção quanto aos
animais vis a vis mochilas, botas e
barracas, com a insolação, e para que evitássemos excessos frente aos riscos
envolvidos na escalada, relatando casos de resgate de helicóptero decorrentes
de acidentes. Ao final, ofereceram um bolo e um presente, o romance Inia: uma aventura amazônica, de Marcela Marques Monteiro, para os aniversariantes,
com direito a ‘parabéns para você’, dentre os quais estava eu, que faria 57
anos dia 31.1.2016. Na manhã do dia 27.1.2016, essa homenagem foi repetida para a Ju, que recebeu de presente um microssapinho preto, característico do monte Roraima. Por oportuno, registre-se que o coaxar dessa população sugeria uma sinfonia, audível com o silêncio. Aliás, no sentido da manutenção de condições auspiciosas, a ordem no monte Roraima é o silêncio. Fiquei satisfeito com a exposição do Magno, que visava,
sobretudo, a segurança individual de cada um e coletiva do grupo.
Após o
almoço, duas Vans nos levaram para a cidade de Santa Elena, na Venezuela. A
viagem foi tranquila e aduana um pouco demorada, mas sem problemas. Após o check in no hotel, saímos para jantar
num restaurante chinês, onde chegamos após uma boa caminhada. Observei uma
espécie de toque de recolher, na medida em que restaurante fechou conosco
dentro às 21 h. Notei, ainda, uma urbanidade decadente, qual a percepção que
tive na visita à Havana, em Cuba. Mesmo que Santa Elena não seja capital, anos
de recessão e não crescimento econômico implica, necessariamente, em
decadência, sob a perspectiva do progresso sociotécnico.
Terceiro Dia
Após o
café da manhã, saímos em caravana de 3 jipes em direção à comunidade nativa
habitantes autóctones da região; povo indígena pemon , para daí seguir caminhando por 13 km até o primeiro
acampamento. Nessa comunidade, assinamos na direção local do Parque Nacional de
Canaima, a entrada para a grande aventura de escalar – subir e descer – o monte
Roraima. Essa comunidade, intitulada paraitepui,
fica a 1.473 metros acima do nível do mar. Portanto, o desnível até o topo do
monte Roraima é de algo em torno de 1.400 metros, conquistados em 3 estágios,
conforme veremos a seguir. Os pemones acreditam que no monte Roraima repousa o espírito do filho de um encontro entre o sol e a lua, ocorrido numa noite rara. Essa sacralidade está ligada ao mito de Makunaima, cuja tradição é passada oralmente através das gerações. Vide a citação sobre Makunaima em Monte Roraima: uma ilha no céu, disponível em http://www.brasilnatural.net/destinos/pdfs/monte_roraima.pdf .
Esse
primeiro trecho, diferentemente dos dois seguintes, é praticamente plano. No
dia, o realizamos, contudo, sob um sol causticante. Ao chegarmos no
acampamento, fomos direto para um banho nas águas super geladas no rio Pedra.
Esse banho, junto com o repelente, amenizou as boas vindas dadas pelos
mosquitos, bastante naturais nessa região. Esses banhos ficariam ainda mais e
mais gelados nas próximas paradas.
Em Boa
Vista, durante o briefing, fomos informados do número de nossas barracas. A
nossa, minha e do Mesquita, recebeu o número 15. Seria nossa primeira dormida
em barraca de toda vida, o que viria a servir de espaço-tempo para um bom
aprendizado com a utilização consciente da não-aversão, sustentada com a
tolerância pacífica.
As
refeições (café; lanche durante as caminhadas; almoço e janta) foram todas da
melhor qualidade, saborosas mesmo, considerando as condições de temperatura e
pressão. Havia sempre uma combinação de carbo-hidrato com proteína para
revigorar as energias. Os lanches eram sempre regados com frutas frescas:
melancia, melão, abacaxi e maçã. Eu tinha adicionalmente uma barrinha de
proteínas e um sache de mistura de frutas, cereais e legumes. De novo, a logística
implementada pela Adventure Roraima amalgamada pela sua equipe sempre atenta
tornou a aventura, para um neófito como eu, segura e, até mesmo, minimamente
confortável.
Dividimos
esse primeiro acampamento com outros grupos que seguiam ou que retornavam para
e do monte Roraima. Após o jantar, já com a lanterna de testa, tomada
emprestada do genro Armando, nos recolhemos cedo, como seria por toda a
aventura, após a preleção do guia líder Francisco, que chamava a atenção para o
horário do café e da partida, orientando quanto o que iríamos enfrentar no dia
seguinte.
Quarto Dia
Como
sempre, saímos cedo entre 7 h e 7 h 30 min. O segundo trecho de aproximação ao
monte Roraima foi de cerca de 9 km. Todavia, ao contrário do primeiro, tivemos
um estágio do que viria a ser a subida final, de extremo esforço para quem não
tem coxas e costas de aço, como os nativos, que parecem deslizar sobre as
pedras, tanto subindo quanto descendo, carregando todo o material de apoio,
barracas, comidas, e as mochilas contratadas para serem carregadas. Aqui
destaco em especial, o nativo Francisco, que carregou a minha mochila
principal. Essa capacidade de ir e vir com facilidade ao monte Roraima também
já está absorvida pelos guias da Adventure Roraima, que no caso do nosso grupo foram:
a Ana, de São Paulo, Francisco, de Boa Vista, e Jésika, da Venezuela.
Fazíamos duas
ou três paradas técnicas para descansar. Numa delas comíamos as frutas frescas.
Elas eram literalmente servidas, numa mordomia toda especial. Elas caiam
realmente como uma luva para revigorar as energias. Assim como no primeiro
trecho, parávamos também para tirar fotos. Tirei mais de 300 fotos, na máquina
tomada emprestada do genro Germano; na realidade de sua filha, Isadora.
Durante
essas paradas e até mesmo durante as caminhadas, subida e descida, íamos
aprofundando os contatos, as novas amizades com os integrantes do grupo. O
grupo naturalmente se dividia em 3: tinha a turma da frente, dos mais bem
preparados; o pessoal intermediário, no qual me encaixei a maioria das vezes; e
a turma mais lenta, porém, não menos corajosa e determinada. Eu sempre começava
com a turma da frente, mas antes da primeira hora já ficava para trás. Muitas e
muitas vezes caminhava sozinho, longe de todos, e até mesmo dos guias. No
entanto, nunca solitário, pois estava sempre a mantar o Gayatri, que me acompanhou por toda a aventura ao monte Roraima, e
que me acompanhado no caminho ióguico. Trata-se de um mantra espacialíssimo,
sagrado e poderoso, que tem tudo a ver com tudo o que estava antes da criação,
permanece durante toda a manifestação e continuará presente após a dissolução; sob
a proteção d’Ele e meditando n’Ele podemos migrar do irreal para o real. Com
Ele tive alguns insights que registrarei adiante.
Dividi o
grupo que compôs a escalada ao monte Roraima por profissões: havia o subgrupo
de 5 médicos: Dani, cirurgião pediatra; João, neurologista; João psiquiatra,
Ju, nutróloga; e Sasha, cirurgião vascular; outro subgrupo era o maior e todos
trabalhavam com a terra, fornecendo insumos e gerando produtos; estudaram
juntos e estavam se revendo depois de longo tempo: Ana, Bira, Dani, Dudu, Mário
e Raquel. Havia dois casais: a Anita e o Alex, franceses; e o Danilo e a Carol,
mineiros, especialistas em TI, que fizeram faculdade juntos. Havia, ainda, a
Rose, professora de botânica, que fez boa parte da caminha de acesso comigo no
pelotão intermediário. Além desses, havia eu e o Mesquita, biólogo. O Mesquita,
assim como no caminho até Santiago de Compostela, bem preparado fisicamente,
fazia parte do pelotão de frente.
Com o Dudu
e o Mário travei prosas sobre coisas sobrenaturais e expectativas espirituais.
Esses temas não me cansam, ao contrário, me aninam. Senti muito carinho por
parte do João (neurologista), que sempre me incentivava, reconhecendo meu
esforço e perseverança. As orientações de Sasha, experiente mochileiro, foram
fundamentais para que não viesse a ter bolhas. Fiquei sabendo, nas conversas
com a Ju, que ela já praticou Yoga, pelo que, de plano, a incentivei a retornar. Sasha e Ju são casados. Os papos com a guia Ana, mostraram uma pessoa autoconfiante e convicta de seus
valores. Foi uma surpresa agradabilíssima dialogar com o guia líder Francisco
sobre o professor Milton Santos, acadêmico já falecido de alto quilate, cujos
conceitos e ideias consubstanciam parte do meio entendimento sobre o Projeto
Zona Franca de Manaus (ZFM).
Quinto Dia
Ao final
do segundo trecho da caminhada chegamos ao acampamento base, a partir de onde
faríamos a subida final até o topo do monte Roraima, pela entrada topo tepui, passando pela rampa, com trechos
de inclinação de até 75º, pelo el carro
(maverick) e pelo paso de las lagrimas,
vazio tanto na subida quanto na descida em função de que não havia chuva. Essa
subida sim seria o teste cardiovascular principal da escalada ao monte Roraima.
Seria cerca de 4,5 km de extensão de subida bastante íngreme. Boa parte dela
feita com ajuda das mãos, de galhos de árvores e de pedras e rochas.
Extenuante, mas a chegada ao topo oportuniza um êxtase todo especial,
notadamente para um coronariopata.
Tepui significa, segundo Emilio Pérez
& Adrian Warren, em seu Mapa Monte Roraima, primeira edição, 2002:
Tepui é
uma palavra de origem pemon que
significa Monte ou Montanha. A palavra tepui
sozinha é utilizada pelos indígenas da família linguística pemon. Em outras etnias da Amazônia venezuelana se utiliza em seu
lugar a ‘Jidi’. Um tepui (plural: tepuis) é um tipo de formação montanhosa, morro ou maciço do Escudo
Guianês, com forma de meseta ou não, constituído de rochas sedimentares
(arenito, quartzo) e/ou ígneas, que alcançam uma altitude mínima de 1.000 msnm
e uma máxima de 3.015 m msnm. Além disso, um tepui apresenta em suas encostas e cumes um clima úmido chuvoso,
ecossistemas de média e alta montanha, o que diferencia claramente esse tipo de
montanha tropicais, por apresentar uma variedade de comunidades vegetais e
animais únicas (endêmicas).
O monte
Roraima se localiza nos tepuis
orientais, e, juntamente com o Kukenan,
são os únicos que possuem rotas de ascensão a pé, os quais já foram também
ascendidos com técnicas de escalada em rocha. Portanto, subimos e descemos, a
pé, o tepui Roraima, de cerca de
2.800 metros acima do nível do mar, e sua superfície é de aproximadamente de
34,38 km2, segundo Pérez&Warren.
O
acampamento base oferecia menores condições de apoio do que o acampamento
anterior, onde a comida era preparada num abrigo fixo com cobertura e uma
pequena varanda. Já no acampamento base a comida era preparada num abrigo de
lona, numa espécie de tenda armada com esse propósito, que passava a ser a base
da equipe da Adventure Roraima. Mas nem por isso a comida ficava menos
saborosa, apesar das condições não-urbanas, considerando, ainda, a fome e a
necessidade de repor as energias.
No
acampamento base também tivemos um super banho para lavar as partes num riacho
mega gelado.
A subida,
como dito, foi uma experiência única, onde lançamos mão de toda nossa energia e
atenção. Havia também as paradas técnicas para repor o fôlego e repor a água
nos cantis, quando o uso de cloro para purificação algumas vezes é indispensável.
Os trechos eram conquistados paulatinamente, os quais recebem seus apelidos, em
função do grau de dificuldade: da titia; da vovó. Eu diria que, o último lance,
seria o da bisavó, pois íamos praticamente nos arrastando no final da ascensão
até o topo, especialmente os menos preparados fisicamente e/ou mais pesados
corporalmente.
Sexto Dia
Antes de
finalizarmos o 5º dia, após a chegada ao topo do tepui Roraima, fomos tomar banho em banheiras naturais com super
mega geladas, alcunhadas de ‘jacuzzis’, que além de anestesiar as dores do
corpo, revigora as energias. Nessa caminhada, pegamos o único dia de chuva. Na
realidade, uma pequena garoa, conforme já dito.
Após uma
caminhada extra de 1,5 km, chegamos ao hotel de infinitas estrelas, onde nos
hospedamos por 3 belas noites, dormidas de forma meia sola. De forma
incompleta, pois virando para a esquerda e para direita, intermediando em
decúbito dorsal, sonecando, acordando, rocando e peitando dentro do saco de
dormir. Mas feliz, muito feliz por estar vencendo o desafio auto imposto como
coronariopata para conhecer um local auspicioso e de muita energia. Os hotéis
ficam em cavernas com parapeitos, que oferecem abrigo do sol, do vento e das chuvas para as
barracas. Seu teto, contudo, é o Universo!
O primeiro
dia no topo foi tirado para ir até o marco geográfico que registra a fronteira
tríplice Brasil-Guiana-Venezuela. Lá deixei com alegria uma bandeira da Pátria,
que nos servia durante os jogos da Copa do Mundo. É verdade, usamos muito pouco
os símbolos nacionais, e é com eles que construímos a nação, a brasilidade.
Antes do
ponto geográfico fronteiriço, tomamos banho em águas puríssimas num poço cuja
fonte vem do Vale dos Cristais, que também visitamos. De novo, águas super mega
geladas. E mais um belíssimo lugar. Sempre tirando fotos; sempre apreciando as
paisagens. Via imagens à toda hora, a representar nomes e formas ancestrais, nas
rochas&paredões e nas formações das nuvens. Os cristais simplesmente
afloram, apontando para a riqueza mineral que o tepui Roraima ainda deve albergar. No início dessa caminhada,
Francisco, o guia líder, considerando as condições climáticas favoráveis, nos
levou para um mirante, uma espécie de enseada definida pelos paredões do tepui Roraima, onde as nuvens ficam
aprisionadas. Um deslumbre!
Nesse
trecho, lesionei o joelho esquerdo. Ao pular um pequeno desnível, ao invés de
descer como vinha fazendo, o hiperfleti como que quase fraturando. O core fatigado e o peso da mochila de
ataque contribuíram para ampliar o risco da desatenção. Estava confiante, pois
tinha superado as caminhadas e a subida. Mas nesse quesito fica o aprendizado: a
atenção deve ser permanente! Após o almoço no El Foso, outro lugar especialíssimo, com o corpo frio, o joelho começou realmente a doer. Francisco, o guia líder, foi fundamental na reta
final de retorno ao hotel de estrelas infinitas, pois me dava a mão para subir
e descer todo desnível que viesse exigir mais do joelho. Apesar do atraso,
chegamos primeiro que o grupo, que se perdeu na névoa e na neblina que o tepui Roraima produz permanentemente. O
primeiro momento do retorno foi em companhia das guias Ana e Jésika, que
igualmente me dedicaram atenção. À Jésika, preocupada com o meu coração, disse
que minha mente estava atenta e alerta.
Como
resultado perdi o passeio do dia seguinte ao mirante ‘A Janela’, pois precisei
ficar de molho, descansando e recuperando para a grande descida. Em troca,
ganhei o primeiro rascunho desta crônica, finalizada agora, durante o carnaval.
Descansei o corpomente com pequenos momentos de reflexão sobre os
acontecimentos e aprendizado decorrente da aventura de escalar o tepui Roraima. Adicionalmente, meditei
utilizando o ajapa So Ham,
como sempre faço. Este mantra, igualmente sagrado e poderoso, revela Tudo!
Aproveitei a oportunidade para organizar minimamente a tralha, já meio que
bagunçada. Nessa noite, o jantar me foi servido na barraca, o que demonstra a
atenção que a equipe da Adventure Roraima dedica para com seus clientes.
Aproveitei, ainda, para iniciar a leitura do romance que ganhei de presente, e
que continuo aqui em Manaus. Registro que estava atento ao músculo nobre e com
foco nos pés para evitar bolhas, mas foi o joelho esquerdo lesionado que se fez
presente. As noites, em geral das 19 às 20 horas, eram desfrutadas contemplando
as estrelas, ou papeando sobre as experiências e as vidas de cada qual e de
todos numa roda. O frio não era polar e glacial com as águas em que nos banhávamos, mas exigia ceroula, segunda pele e fleece básicos. Um um gorro pegava bem. Entre 5º e 10º à noite; entre de 10º e 15º durante do dia.
Sétimo Dia
Conforme
dito acima, este dia foi todo dedicado a “parar” e ficar sem fazer “nada’. Isso
traz um bom significado para o nosso cotidiano, na medida em que é bom parar,
não fazer nada e observar os papéis que desempenhamos em nossa existência.
Verificar o karma, enquanto lei
universal de causação; aquilatar o Dharma,
enquanto perspectiva de aproximação com a Ordem cósmica.
Descanso e
recuperação, afinal a grande descida iria exigir muito da estrutura
esquelético-muscular, notadamente do joelho lesionado. A mente precisaria se
manter firme. O coração, tranquilo, especialmente por hospedar o Ser numa forma
ordinária perecível-impermanente, mas fundamental e essencial para a realização
do autoconhecimento. Neste momento da crônica aproveito para socializar e
comentar os insights:
O
MUNDO ESPIRITUAL É AINDA MATERIAL MESMO QUE MENOS GROSSEIRO E MAIS SUTIL.
PORTANTO, PERMANECE SUBMETIDO AO TEMPO!
Comentário:
Essa
é uma afirmação que li em algum texto do Budismo Tibetano. Naquele momento, a ‘ficha
não caiu’. Mas, ‘passei o cartão’ contemplando o tepui Roraima, durante os vários momentos em que durante as
caminhadas estava só, porém, nunca solitário. Como disse acima, sempre
acompanhado do Gayatri mantra.
O insight,
para mim, faz todo o sentido, pois a liberdade e a imortalidade, que se realiza
com o autoconhecimento, só é possível para além do tempo. O mundo espiritual
engendra, ainda, algum espaço. Assim, do ponto de vista do Ser, de Sat-Cit-Ananda, não faz sentido adjetivar por
exemplo Luz, de divina, pois Tudo é Um Só! A adjetivação não-profana da Luz, como
divina, está associada aos nomes e formas perecíveis e impermanentes. Essa percepção torna mais e mais incompreensível e inaceitável a equação vedantina Atman é idêntico à Brahman. Isso,
contudo, não afasta a proteção que recebemos de seres espirituais, que
absorveram grande conhecimento e dedicam sua existência não-secular para a iluminação,
libertação e salvação de todos os seres.
DO
CONFLITO: ESSENCIAL VERSUS NECESSÁRIO
VERSUS SUPÉRFLUO
Comentário:
Essas
correlações foram pensadas durante a caminhada até Santiago de Compostela, mas
foram ratificadas durante a escalada ao tepui
Roraima. A busca do supérfluo nos aprisiona na luxúria. Os sistemas de propriedade
e de acumulação de bens criados pela humanidade oportuniza a diferença social
pela posse, que pode ser expressa pelo conforto e segurança. Nesse mundo de status e títulos, que todos nós
buscamos, os sentidos externos estão comandados pelo ego. Nessa dimensão,
visamos o futuro para como conformar a manutenção das coisas e bens acumulados,
ampliando-os.
A ponte
entre os extremos da luxúria e do essencial é o caminho do meio, como
plataforma existencial modesta. Uma existência pautada no necessário
possibilita espaço-tempo para trabalhar o equilíbrio para a boa qualidade de
vida.
O
essencial traz consigo, todavia, um grande aprendizado, pois aponta para a
sobrevivência. Ele nos afirma no momento presente, no aqui e agora, quando
podem aflorar a solidariedade, ao invés da competição do outro extremo. As
experiências isoladas, qual escalar o tepui
Roraima, realizadas necessariamente fora do mundinho urbano, nos leva a
observar de longe os cotidianos intrínsecos associados às posses e aos títulos,
portanto, ao status social e
econômico, para visualizar o caminho do meio. Idealmente, podemos lançar mão de
coisas e bens em excesso, abrindo espaço-tempo para novas energias reparadoras
e, sobretudo, transformadoras.
Esta forma
ordinária continua no passo da unidade desde quando tomou consciência das
rachaduras do tecido social com a leitura da doutrina política anarquista, que
aponta para a solidariedade em detrimento da competição econômica: uma casa; um
carro; uma conta bancária. Uma experiência civilizatória lastreada pela
autogestão, contudo, só poderá ser efetivamente realizada quando os venenos que
escondem o Ser no músculo nobre forem extirpados por transmutação: regozijo ao
invés de inveja; a compaixão ao invés da ganância, e, sobretudo, o Conhecimento
ao invés da ignorância. Até lá, o diálogo karma
versus Dharma continua compatível com
o atual estágio de evolução espiritual da humanidade.
ENFRENTAR
OS DESAFIOS POR APROXIMAÇÕES SUCESSIVAS É UMA BOA ESTRATÉGIA
Comentário:
Muitas e
muitas vezes temos que enfrentar, durante nossas vidas, metas, objetivos,
projetos complexos e duros. Nunca devemos; nunca deveríamos desistir, a menos
que por motivo de força maior. Devemos observa-los, estuda-los e investiga-los,
pois aos poucos vamos dominando a questão e sua ambiência.
Ao me
deparar, ao me aproximar do tepui
Roraima, me perguntava como iria destrinchar a encrenca, o abacaxi da escalada
até o topo. Não obstante, à medida da subida em que se dava a ascensão, percebi
que de degrau a degrau, passo a passo, o desafio ia se desconstruindo, o
paredão ia ficando menor, se encurtando, se estreitando. A grande decisão é dar o primeiro passo, encarando o desafio de frente. E, como num passo único
de mágica, lá estava eu: no topo!
Minha
consciência sobre a ZFM é resultado de uma observação, de um estudo e de uma
investigação que já dura duas décadas. Nesse tempo, consegui transcender sua dimensão
de um modelo, de um fim em si, para a de um projeto, de um meio para si,
desvendando sua natureza intrínseca, segundo valores do autodesenvolvimento.
Suas evidências positivas apontam para um crescimento econômico dependente de
vantagens competitivas estáticas, para a atração de capital e tecnologia
exógenas. Na lógica capitalista, o que faz sentido é a acumulação de lucros e a
apropriação de conhecimento, caso contrário, os cidadãos do local dependente se
tornam de segunda categoria.
A Descida
O sétimo
dia foi programado pela Adventure Roraima para a grande descida. A descida
representa fazer o segundo e o terceiro trecho de ascensão numa só lapada. Foi
bom ter descansado em função da lesão no joelho, do ponto de vista da grande
descida. Descer significa exigir muito dos joelhos, os quais seriam protegidos
com coxas de aço, o que não é meu caso. Então, me preparei psicologicamente
para descer, afirmando positivamente para a mente essa possibilidade e
necessidade. Passei a tomar Torsilax de 12 em 12 horas, com o aval do Sasha, e
lancei mão de duas joelheiras.
Cheguei ao acampamento base sozinho, após descer
a maior parte em companhia da Raquel, que avançou na reta final. Lancei mão da
bunda, para escorregar quando o espaço não oferecia galhos e pedras para o
suporte. Na oportunidade, muitos mochileiros, de diferentes grupos, subiam,
quando percebia o quanto já havia desfrutado do tepui Roraima. Quando cheguei ao acampamento base, lá já estava o pelotão de frente. Em seguida, chegaram todos. Todos buscavam descansar à sombra.
Depois de almoçar, saí no primeiro pelotão, que
acompanhei apenas por poucos minutos, ficando para trás, sozinho. Quando estava
sozinho, como disse, nunca estava solitário, pois continuava a mantrar o Gayatri. Sempre. Adiante o guia
Francisco me fez companhia, avaliando meu estado e orientando o sentido correto
do caminho. O sentido da direção era uma só; a margem de erro é muito pequena.
Não há desvios. Ainda assim, ao invés de contornar a base de um morrinho, subi,
o que exigiu nova descida, ainda que muitíssimo menos extenuante. Mas, poderia
ter sido evitado.
Cheguei ao acampamento do rio Kukenan muito lentamente. Passo após passo; sozinho. Todo dolorido;
cansado. Imediatamente, fui tomar banho em suas águas hiper geladas. Lá já
estavam os mochileiros do pelotão de frente, que comemoraram a minha chegada,
parabenizando minha determinação. Foram 16 km desde o hotel estrelas infinitas!
Após o
contato com a mochila e com a barraca, tomamos cerveja quente para festejar o
avanço. Afinal só faltava o último trecho de 13 km até a comunidade nativa.
Cada cerveja valia $ mil pesos bolivarianos, o que representa algo em torno de
R$ 5,00, demonstrando a perda do poder aquisitivo da moeda venezuelana. A
propósito, o câmbio de R$ 500,00 para pagar o carregamento da mochila principal
e para despesas pessoais, exigiu um monte de dinheiro; uma dinheirama.
Como
sempre acontecia durante o programa, o guia líder Francisco fazia sua preleção
e fomos dormir cedo, após um macarrão com atum. Desta vez, saímos um pouco mais
cedo, antes do sol nascer, para evitar insolação. A previsão era chegar antes
das 10 h, com 4 horas de caminhada. Minha caminhada nesse último trecho foi
propositalmente lenta e sempre atenta. O realizei sem grandes dores e
sofrimento, como aconteceu no momento da lesão no joelho esquerdo, na visita ao
marco fronteiriço, e na grande descida, no dia anterior. A maior parte do
trecho foi realizado com a Deni (cirurgiã pediatra), com quem ratifiquei o
insight do essencial abortar no aqui e agora. Deni foi uma guerreira, pois me
confessou que foi a primeira grande trilha finalizada. Ou seja, as duas outras
experiências negativas não foram suficientes para faze-la desistir. Nunca. Sempre
que possível avançar. Essa é a Ordem. Estamos condenados à liberdade e à
imortalidade!
Registro
especial para a outra Dani (agrônoma), que fez esse último trecho de chinelo,
em função das múltiplas bolhas que seus pés fizeram. Outra heroína! Observei
também que o João (neurologista) também fez bolhas, o que provocou algumas vezes
deixar o pelotão de frente. Sempre resistindo; nunca reclamando, venceu a
escalada ao tepui Roraima. Todos,
cada qual ao seu modo, vencemos!
Enfim,
chegamos na comunidade nativa, assinamos o ponto de saída do Parque Nacional
Canaíma, assim como fizemos no início, pela entrada. Tomamos cerveja, agora
gelada para comemorar o sucesso da aventura de escalar o tepui Roraima. No total, foram cerca de 80 km. Tiramos uma bela foto com todos os guias e nativos
de apoio, inclusive o Francisco, que carregou minha mochila principal e que foi
presenteado com a minha mochila de ataque, uma calça de poliamida e uma papete
e outros coisas e apetrechos menores.
Após
almoçarmos na localidade São Francisco, onde comprei uma pedra para a Cristina,
para mim e para o Dudu, uma corujinha de arenito para a coleção da ricaneta
Maria Clara e uma lembrança, um pequeno artesanato também em arenito da Gran Savana,
para um amigo, deu-se a viagem para Boa Vista. A aduana se processou sem
maiores problemas, salvo as influências de uma cultura que nega o coletivo,
conforme observou e protestou o Sasha. Jantei no hotel mesmo, limpei a mochila
e as botas. Dormi. Ao acordar fui tomar café e nadar. Em seguida a um papo
cabeça com o Mesquita, fui ao shopping Páteo comprar presentes para as ricanetas. No
aeroporto, comprei camisetas para os genros; da senhora idosa, super gentil, que me atendeu, ganhei bombons de chocolates, que ofereci para as
ricafilhas, e um pequeno artesanato de Boa Vista, que dediquei para a Tainara, colega da Suframa, que me forneceu o contato com o Magno. No voo, vieram, ainda, o Danilo e Carol, que receberam carona do
Mesquita. No aeroporto, a Cristina e a ricaneta Maria Clara me aguardavam. A
vida, agora, volta seu curso normal, com um cotidiano a ser reconstruído a
partir do aprendizado e do conhecimento acumulados e oferecidos pelo tepui Roraima. Que assim seja!
Nota: A tralha foi basicamente a mesma da de Santiago
de Compostela, adicionada de 3 camisas de manga comprida com proteção solar,
que se mostraram bastante úteis, dois jogos de calções e camisetas de ginástica
de poliamida e uma ceroula de algodão, aproveitando o jogo do carregamento
contratado associado ao uso de uma mochila de ataque. Usei tudo que levei, à
exceção de uma segunda pele, para o frio, que se mostrou em excesso. Muito útil
se mostrou a agulha e os compeed para
drenar e sarar as bolhas dos mochileiros. Nessa escalada, se extraviou dois
cuecões de poliamida, o que é de somenos, qual a lesão no joelho, frente aos
benefícios existenciais conquistados. Mas, fica o registro, como alerta, para
os aventureiros. Custo da aventura? Se você, que me lê, não mora em Boa Vista,
como eu; se já tem tralha, como eu tinha; e, se pretende utilizar carregador
para levar sua mochila principal, como eu fiz, reserve cerca de R$ 3,5 mil. Se
for econômico, capaz de voltar com alguma sobra!
Apêndice:
Meu comentário ao post do Mesquita
em seu mural no facebook, compartilhado em meu mural, que bombou na grande rede:
Grande
escalada de superação cardiovascular e aproximação espiritual. Joelhos
estourados de somenos. Obrigado caro Mesquita pela parceria e companhia. Lugar
especialíssimo do planeta Terra. Luz!
Meu
comentário em meu post no meu mural do facebook:
Caríssimos
amigos facebookianos. Passada a emoção, superada a lesão no joelho esquerdo, já
no convívio familiar e de retorno ao trabalho, socializo algumas imagens da
aventura de escalar o monte Roraima. Experiência espetacular e indescritível!
Para além de descobrir que esta forma ordinária está com boa saúde física e
mental (não deu um espirro, mesmo lavando as partes em águas super mega hiper
geladas; não sentiu uma dor de barriga, mesmo comendo comidas preparadas fora
das condições
urbanas; não teve nenhuma alergia, mesmo em contato explícito com a natureza;
não teve nenhum pânico em relação ao desafio e às condições socioambientais e
ainda superou o medo da doença - lesões nas coronárias - e até mesmo o medo da
morte, consciente da impermanência dos nomes e das formas), ainda teve
oportunidade de fazer aproximações espirituais, aprendendo e expandindo o
autoconhecimento. Shakti foi
extremamente generosa oferecendo dias ensolarados e mantendo afastadas do grupo
as aranhas, os escorpiões e as cobras, sem falar da proteção contra as fraturas
expostas e acidentes mais sérios, possíveis nesse ambiente de risco de acesso a
um local dos mais antigos deste planeta Terra. Todos podem realizar essa
aventura; basta se preparar física e mentalmente e estar com boa saúde. Vale a
pena! Luz!
Cronograma da aventura:
21.1.2016
|
Viagem
para Manaus/Boa Vista
|
22.1.2016
|
Viagem
Boa Vista/Santa Elena, na Venezuela
|
23.1.2016
|
Viagem
para a comunidade nativa. Caminhada até o primeiro acampamento no rio Pedra
|
24.1.2016
|
Caminhada
até o acampamento base.
|
25.1.2016
|
Subida
ao topo do monte Roraima. Caminhada até as “jacuzzis”, para tomar banho.
Caminhada até o hotel de estrelas infinitas
|
26.1.2016
|
Caminhada
até o ponto geográfico da fronteira tríplice, passando pelo Vale dos Cristais,
onde tomamos banho, e almoçando no Poço
|
27.1.2016
|
Descanso
e recuperação em função da lesão do joelho esquerdo. Parte do grupo foi a um
mirante chamado “A Janela”
|
28.1.2016
|
Descida
até o primeiro acampamento no rio Kukenan
|
29.1.2016
|
Caminhada
final até a comunidade nativa. Viagem para Boa Vista
|
30.1.2016
|
Viagem
Boa Vista/Manaus
|
Nota Final: Dia 31.1.2016, como dito acima, esta forma
ordinária fez 57 anos!