sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

A Doença da Falta de Consciência

A Doença da Falta de Consciência[1]


Desde o tempo em que o homem passou a tentar organizar social, econômica e politicamente as sociedades, passou, por via de conseqüência, a determinar o modo de pensar e de viver de todo indivíduo/cidadão. Basicamente, o processo consiste em fazer com que o indivíduo/cidadão, desde os primeiros passos de seu desenvolvimento de socialização, assimile valores e costumes discursados como universais e permanentes, os quais oferecem a sustentação do respectivo sistema de conformação da produção e da troca das mercadorias e do perfil de Estado.
Assim, todo ser humano vê-se diante de uma ordem ideológica constituída que determina, a partir de regras jurídicas e condutas sociais psicológica ou coercitivamente concebidas e impostas, sua visão de mundo, via de regra, convergente para a manutenção do estado de coisas favorável às intenções daqueles que detêm o poder político e econômico.
Situando-nos, agora, nesta contemporaneidade, o Estado burguês, enquanto instituição alternativa desenvolvida pelo homem para dar resposta à possibilidade de sua existência em sociedade, faz valer os princípios do liberalismo, fundamentalmente os da liberdade de associação e de expressão e da igualdade jurídica e de oportunidades, preconizados como acima das leis, objetivando oferecer substância ao respectivo ordenamento político-ideológico.
Nesse sentido, justifica a atual organização social à medida que, dispondo daqueles princípios fundamentais enquanto conquistas da Humanidade, oferece a possibilidade de assegurar, através da ação social daquele mesmo Estado burguês, o bem-estar de todo o cidadão.
Entretanto, não é o que ocorre, senão vejamos:
1. A opção pela busca do progresso material a todo custo para a Humanidade como o melhor caminho à seguir, compreendida nesta oportunidade como intrínseca à operação do sistema capitalista, ao qual o Estado burguês oferece guarida, e como diretriz maior de uma pretensa solução definitiva, camufla uma condição social e econômica extremamente desfavorável à maioria do conjunto da sociedade mundial. Conjunto marcadamente melhor definido pelas populações dos países excluídas do Primeiro Mundo, representando os macroagentes periféricos da ordem financeira, econômica e política internacional; vide a massa humana brasileira que experimenta a miséria, os povos da África, enfim, todos aqueles que não dispõem de comida, casa, remédios, livros, etc.;
2. A causa da miséria está representada pelo resultado da gigantesca acumulação de riqueza por parte de alguns poucos cidadãos, relativamente às necessidades cotidianas de um ser humano, exatamente aqueles que operam e expandem o modo de produção capitalista, como já dito, acobertado e mantido pelo Estado burguês. A riqueza consiste tanto do grande capital transnacional, quanto do pequeno capital regional.
Fazem parte também daquele privilegiado rol os cidadãos que conformam fortunas a partir da indigna gestão dos recursos da sociedade canalizados para o Estado no sentido de que fossem revertidos em benefícios sociais, maximizando as agruras impingidas pelo próprio sistema capitalista/Estado burguês. Por certo que, a indignação significa que a fortuna/riqueza é formada a partir da desobediência civil relativamente à prática das regras institucionais que regem a ordem vigente, regras elaboradas por eles mesmos ou por seus representantes colocados pela força do poder econômico, processo camuflado pelo voto popular, na gestão do Estado burguês.
Aquela desobediência civil, no sentido da negação do próprio discurso político do sistema/Estado, dá-se, por exemplo, à medida da promoção de conluios entre as esferas privadas e pública, de atitudes que sempre subtraem a capacidade da ação social do Estado burguês para fins do bem-estar de todo ser humano, enfim da necessidade de se estabelecer uma melhor distribuição da riqueza produzida pelo homem.
Postos estes traços gerais, todo indivíduo que traísse o discurso do ordenamento político e ideológico, enquanto discurso justificador do modelo de organização socioeconômico, deveria ser acometido da doença da falta de consciência de forma explícita para o conhecimento de toda a sociedade e, inclusive, para fins de tratamento psiquiátrico. Uma vez que todo discurso estrutura-se na busca do bem-estar de todo indivíduo/cidadão e das sociedades como um todo, toda traição faz afastar cada vez mais a possibilidade de uma efetiva justiça social, desfalcando importante ferramenta para o aprimoramento do que se poderia denominar Projeto Humanidade. No nosso caso mais próximo, ainda que permeada da bruta forma de organização social, baseada na competição e no consumo, obstaculizando a causa do Projeto ZFM, entendida como vetor de alavancagem do desenvolvimento regional.[2]
A caracterização de um conjunto de indivíduos/cidadãos socialmente doentes por falta de consciência, nos moldes definidos acima, favoreceria uma tomada de posição positiva por parte do restante da sociedade convergente para uma ação conjunta, não necessariamente revolucionária, mas no sentido de trabalhar, via uma educação libertária, a possibilidade real de se promover uma evolução mais qualitativa para a Humanidade, talvez até mesmo através do burilamento deste próprio sistema capitalista/Estado burguês, à medida em que, tornando-o menos perverso, surgissem novos pontos de reflexão visando uma melhor alternativa de organização das sociedades ainda não permitida ao pensamento humano.
Quanto à nossa realidade, possibilitaria tirar melhor proveito do Projeto ZFM, significando aplicar os recursos monetários decorrentes de sua operação de forma mais ética e voltado estritamente para o financiamento do desenvolvimento regional
Então, poder-se-ia desfazer a enorme máscara, a desumana hipocrisia da qual todos nós fazemos parte, enquanto indivíduos/cidadãos não-marginais ao sistema capitalista/Estado burguês. Só assim poderíamos afirmar ao final, quando do 2013 (agora 2023), que o Projeto ZFM foi o verdadeiro financiador do desenvolvimento regional, enquanto instrumento do Estado burguês nacional de proteção à reprodução ao capital estrangeiro, nacional e regional, bem como de sobrevida ao trabalho da região.
É interessante, para finalizar, reproduzir um pensamento de Isaiah Berlin, em Limites da Utopia - Capítulos da História dos Ideais, editado pela Companhia das Letras, em São Paulo, no ano de 1991, expresso pelas seguintes palavras: “...Somos condenados a escolher, e cada escolha traz o risco de uma perda irreparável. Felizes os que vivem sob disciplina que aceitam sem questionar, que obedecem espontaneamente as ordens de seus líderes, espirituais ou temporais, cuja palavra aceitam como lei infrangível, igualmente felizes os que, através de seus próprios métodos, chegaram a convicções claras e inabaláveis com relação ao que fazer e o que ser, sem a menor sombra de dúvida. Só posso dizer que os que se instalam nesses confortáveis leitos do dogma são vítimas de uma miopia auto-imposta, antolhos que podem trazer contentamento, mas não a compreensão do que significa a humanidade do ser” (p. 23).
Bem que a perda irreparável a que se refere Isaiah Berlin poderia ser a conseqüência da doença da falta de consciência, inclusive e sobretudo, daqueles próximos a nós que em nome do Projeto ZFM reproduzem seu poder econômico e político em detrimento da maximização da solução definitiva para o desenvolvimento da Amazônia ocidental.
[1] Utilizando a parábola de Platão denominada “alegoria da caverna”, cabe um paralelo, ainda que grosseiro, do homem sem consciência deste artigo, com o homem acorrentado daquela parábola, de frente para o fundo e de costas para a entrada da caverna, portanto, voltado exclusivamente para as imagens imperfeitas projetadas pela luz que vem de fora.
[2] Hoje, diria, certamente, desenvolvimento sustentável, que altera sobremodo a lógica da concepção do desenvolvimento, historicamente, “de fora dentro” para “de dentro para fora” a partir de determinda autonomia política e econômica.

PS.: Reflexão escrita em 1993 e reproduzida nas edições do Redesenhando o Projeto ZFM de 1996 e 2006.

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